ROMANCE TERRA DE MARATAOAN
O MAIOR ROMANCE BARRENSE DE TODOS OS TEMPOS
Maria da Conceição ouviu toda a conversa sem dizer mais nenhuma palavra; mas a ideia de que talvez pudesse dar uma surra na irmã sorria-lhe ao espírito. No dia seguinte a conversa com Clotilde disse-lhe que, antes de partir, deixaria recomendado aos irmãos quem era ela.
A mulher procurou ainda ver se alcançava seguir com a família para um lugar mais dentro do babaçual, mas optou por morar mesmo na beira da estrada. Era simples a cobiça de Clotilde na pouca ou nada de fortuna dos pais, ela desejava as terras, os animais, ou mesmo impulso de inveja contra a irmã. Era tudo isso, talvez, mas Clotilde escondia um segredo a sete chaves, amante do vaqueiro Raimundinho do João Tomaz que noivara com a Glória do Viveiro depois da moça ficar falada no Mocambo.
- Ele não pode se casar com aquela desavergonhada!
Dizia Clotilde enchendo as cabaças de água no poço do senhor Florindo e conversando com Maria Luzia.
- Pois é minha afilhada, homem também não presta! Alfinetava a velha.
- Bênção madrinha!
- Deus te abençoe! Dá lembrança sua mãe.
Zé Antonio principiou a andar; comovido e desolado; e até se sumir na curva da entrada do Barro Preto, de pé no calçado, dobrava as mangas largas da camisa. Tampinha gritando lamentosamente:
- Mamãe! Mamãe! O papai foi embora!
Clotilde comentou, entrando em casa depois de encher as cabaças de água. Ela tinha visto quando Zé Antonio pegou as malas e rumou para o Maranhão.
- Credo! Que desespero do meu sobrinho Tampinha!
Tampinha enxugou pela derradeira vez os olhos úmidos:
- Foi porque eu não o ajudei...
- Não menino, isso é coisa de adulto! Dizia Clotilde.
Dias depois, indo e vindo, na cozinha enfumaçada, Clotilde, furiosa lamentava pelo noivado de Raimudinho do João Tomaz.
- Essa sem-vergonha só quer é namorar! Vive de dente de fora pros homens e não liga pra nada!Por causa dessa peste roubaram o meu casamento!
Bartolomeu filho do Zé Lustosa, sentado no pilão, escutava pacientemente a tia lamentando-se enquanto preparava o almoço. Na última hora foi-se a derradeira esperança de Conceição do marido voltar para casa. O marido partiu sem ela e deixou os filhos. Abandonada, pobre, tendo por única perspectiva o trabalho diário nos babaçuais do Barreiro do Otávio, sem esperanças no futuro, e além do mais, humilhada e ferida em seu amor-próprio, Maria da Conceição tomou a triste solução dos que não são na vida covardes, e arregaçou as mangas para trabalhar no sustento dos filhos.
O galo anunciava ás cinco da manhã. O cheiro do café invadia a pequena casa de taipa e de longe se ouvia Raimundinho do João Tomaz aboiar o gado. Conceição com o machado e o cofo nas mãos colocava dentro do jacá e em seguida selava o cabresto do jumento amarrando bem forte a cangalha para não pender pros lados. Assim que preparou o jumento batizado de Salomão, ela caminhou até o quarto e abriu a porta feita de esteira a fim de acordar o filho Marcos.
- Está doente? Perguntava a mulher ao menino Tampinha.
- Não, respondeu ele.
- Mas por que tu não acordas?
- É bom dormir, mãe! Disse Tampinha.
Os dois saiam ainda no escuro catar cocos nos babaçuais. Maria Luzia uma moradora do lugar, um tanto, o tipo de mulher bisbilhoteira e leviana. Em lhe cheirando novidade ou fuxico preparava-se para instruir se de tudo. Para isso assumia o ar condigno com a situação. Sentava-se comodamente em uma rede de
tucum balançando-se e olhando quem passava na estrada; Maria Luzia ruminava todo o ódio que envenena os maus.
E, por nada entender dos desígnios eternos, ela própria preparava a língua consagrada aos delitos dos falatórios. Caminhava com a dentadura dançando na boca e olhando a auréola do sol nascer, porém a mulher, um anjo vigilante inebriando-se nas casas dos vizinhos para deserdar a vida dos outros.
- A Conceição já levantou para apanhar os melhores cocos, não dormi mais não!
Maria Luzia falava de todos no lugar; daquelas pessoas que a nudez da miséria estampava a cara. Disse-lhe que naquela situação não via solução possível, e confessou ingenuamente que a ideia de denunciar ao coronel Regilberto pai do vereador Rui Rosas, dono da moradia que Conceição não pagava renda dos cocos pulsava por dentro do corpo.
- Não paga renda? Perguntou Romeu; Tu tá é doida com uma estória dessas.
- Doida! Respondeu Maria Luzia; entretanto não via a hora de ir à casa grande da fazenda do coronel Regilberto.
Romeu interrompeu a esposa e disse que a mulher só queria criar os filhos dela. Uma ideia súbita atravessava o espírito ruim da mulher: a ideia de que Romeu tivesse muito apreço por Maria da Conceição.
- Então tu a defendes, dizia Maria Luzia.
O homem não reparou na frase cortada da mulher, e disse:
- Vive lutando depois de ter sido abandonado pelo marido.
- Nesse caso o que tu queres? Perguntou Romeu, a quem pareceu que era bom atacar a megera de frente.
- Inútil conselho, pois que já tenho a idéia fixa Romeu.
- Talvez, mas vai te meter em confusão. Mulher, disse Romeu, deixa disso.
Quando Maria Luzia voltou da quitanda do senhor Florindo, a língua já vinha afiada e eriçada de fuxicos. A velha de tão ruim que nascera entanguida, tremia as mãos insistentemente, com as pernas duras e os olhos cinzentos vidrados, além de colocar a dentadura para dançar de um lado a outro dentro da boca:
- Estão dizendo na quitanda que a confusão de terra no Barreiro é das grandes!
Romeu levantou o corpo curvado, gesticulando com o dedo na boca e aguçando os ouvidos para o fuxico:
-O que tu ouviu mesmo na quitanda do Flor?
-Deixa de ser moco, estou dizendo que uns moradores lá do Barreiro querem moradia e estão desde manhã, junto da cerca lá da solta velha e só agora que a polícia das Barras deu as caras por lá.
O azul pavilhão do céu distendido na imensidão do mundo circundava-se com a esférica amplidão das nuvens. O drama dos trabalhadores rurais na luta por umas glebas da terra para morar e plantar o alimento. O embriago febril dos latifundiários nas essências confundidas nos interesses em mais torrão e chão.
Talvez do óleo de coco dos babaçuais por muito tempo seria a crina ondeante das riquezas descobertas no lugar. Os pobres homens queriam apenas cultivar o pão de cada dia naquela imensa terra. O INCRA com o desejo dos ouvidos cantantes dos poderosos a época
era apenas um oásis e sonho sobre o odre abundante do latifúndio dos coronéis.
O pessoal olhando a abóbada diurna de o sol nascer sem a esperança de resolução do conflito da terra. Os cafés de tristeza dos trabalhadores só aumentavam nos ornamentos dos discursos sem solução do INCRA que os multiplicava irônicos com celestes léguas de conversas fantasiosas. De um lado a imensa terra e do outro as imensas pessoas separadas nas imensidões de léguas do universo inteiro de bordel das terras ociosas. Maria Luzia de cócoras batia a língua nos dentes:
- homem, tu sabes que agora que o compadre Flor mandou matar o garrote e nem trouxe pra nós um pedaço... Quando o sol tiver alto, tu esticas as pernas até lá para comprar um quilo da carne, não escolhe do lado do pescoço que não presta.
Depois de amolar o machado que há muito tempo cego, Romeu espiava de braços cruzados, vendo de longe, o curral do quitandeiro e Zé Lustosa com o machado nas mãos matar sem resistência o garrote gladiador.
-Ele devia ter te chamado pra matar o garrote! Mas tu nem se inteiriçou.
Zé Lustosa ajoelhado no chão gritou:
- Seu Flor, o gladiador deu adeus!
Depois do golpe certeiro, Zé Lustosa se afastou e chamou o dono do garrote afamado, que de longe no balcão da quitanda via a cena da morte do animal no curral. A pancada do machado no meio da testa do garrote e a faca amolada tirando o couro sob a esteira ensangüentada faziam Zé Lustosa suar.
Ele mandava o encarregado, o vaqueiro Raimundinho do João Tomaz em estado melancólico pela morte do animal avexar-se e trazer a balança e pesar a carne, mas antes tinha que recolher na solta uns galhos, enquanto furava a carne à vontade.
- Raimundinho! Leva um pedacinho de carne pra Conceição dar pros meninos dela. Dizia pausadamente dona Mara Rúbia.