CAPÍTULO 28
Rui Rosas sabia muito bem em ano de eleições trocar o dia pela noite, dizia o vereador, é ganhar o pleito corrigindo o político sem dinheiro.
O vereador dizia que aos homens e mulheres barrenses que em vão descansam e dormiam ao passo que o frescor da noite não descia o suor de ganhar uma eleição no corpo a corpo, nas lutas sociais e a noite é a verdadeira estação em que um político deve fazer política.
Livre das ações da justiça eleitoral, não queria sujeitar-se à lei absurda que a sociedade os impõe: velava de noite, e dormia de dia nas sessões da Câmara.
Contrariamente a vários programas do prefeito Mundico Goma, Rui Rosas cumpria os deveres que o povo lhe concedeu com o escrúpulo digno de um grande sem consciência legislativa. A aurora para ele era o crepúsculo, o crepúsculo era a aurora e vice e versa.
Não lia jornais, gostava de ouvir as ondas sonoras da Rádio Difusora 630 kHz. Achava que o jornal era a coisa mais inútil do mundo, depois da câmara dos vereadores. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade de político.
Graças a fortuna do pai, o coronel Regilberto, dono da localidade Paquetá, o homem podia gozar a vida que levava, esquivando-se do trabalho entregue pelo povo. Ele mesmo dizia que na política quem mandava era as cédulas dos cruzeiros. Quando algum eleitor lhe pedisse ajuda ele respondia:
- Meu povo, eu nasci com a grande vantagem de ter uma coisa dentro do peito que é cachaça.
Coronel Regilberto acrescentava que a fortuna construída com as barragens do DNOCS suplantara a natureza, deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa soma de contos de cruzeiros. Mas esquecia que a fortuna, apesar de generosa, é exigente, e quer da parte dos seus filhos não poderia ter esforço próprio.
- De alguns eleitores, bem sei.
Hoje, porém, o homem dizia que era indispensável que o povo lhe desse a honraria de chamá-lo de coronel. O capataz chegou à fazenda Paquetá com os títulos de muitos moradores. Apeou do cavalo, amarrou debaixo do pé de manga que fazia sombra no lado do curral dos animais.
Coronel Regilberto já o esperava. Depois que apeou, com indolência desajeitada, tirou o cabresto de baixo da capa da sela e pegou a boroca cheia dos documentos. Do alpendre da fazenda, coronel Regilberto olhava o homem. Ele balançava-se na rede de tucum, na mão esquerda o cigarro de palha feito de fumo saci.
- Boa tarde, coroné.
- Abanque-se homem!
O capataz sentou-se no grande banco de pau de angico, junto ao parapeito da fazenda.
- Eu trouxe os negócios...
- Então os moradores não falaram nada!
- Que hão de dizer coroné! Quem manda aqui é o sinhô!
O coronel não quis alongar a conversa tristemente.
- Meu filho Rui deve tá chegando das Barras!
- E, pelo que ouvi dizer, o Mundico Goma aceitou ele como vice dele!
O homem levantou a cabeça, olhou pensativo para a estrada. Depois, subitamente, fugindo à idéia que o preocupava:
- Quantos títulos tu trouxe?
- Uns trezentos!
O capataz levantou a boroca, derreou os documentos embaixo da rede, e coçou a nuca.
- Tá tudo aí!
O coronel Regilberto falou lentamente, no vaivém do balanço:
- É... Só falta o prefeito mandar as coisas.
- Tem gente que já até pediu pedalos de bicicleta e catraca também!
Quando o capataz contou novamente, ele falou:
- Não disse, tem trezentos!
- É nesse curral temos trezentos votos garantidos!
Lentamente o coronel Regilberto balançava-se na rede de tucum. O capataz saia a trote largo no cavalo. Ia levantando poeira da vereda, com a calça de couro na larga sela, de arção redondo.
O vereador Rui Rosas chegava de Barras e entrando na fazenda via o pai deitado se balançando. O homem se indagou do negócio e o pai principiou a contar o que tinha feito.
Débora o interrompeu:
- Que coisa feia vocês dois estão fazendo?
- Ora, irmã, nossa política é assim!
Além disso, o povo da nossa localidade vai se beneficiar nesse período de estiagem.
O coronel Regilberto, mexendo o café, falou:
- Essa menina veio de Teresina cheia de idéias democráticas.
- Fez bem, meu pai. Vamos vencer essa eleição!
- e o homem é de confiança!
- Sim é o Pedro Peba, homem perigoso. É o homem mais perigoso dessas bandas. Não sei. Dizem o povo que já furou muitos na faca.
- Bem uns vintes?
- Ou até mais!
O coronel entregava-lhe os títulos dos eleitores da região, imediatamente a filha Débora repreendeu de novo o pai pelo ilícito a democracia. Débora uma recém formada no bacharelado de Ciências Sociais não aprovava os atos indecentes do pai, ato corriqueiro dos coronéis das Barras em época de eleição nos primeiros anos da década de oitenta.
A jovem Débora tinha vinte e quatro anos, e a sua beleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condão de fazer morrer de amores os homens da região. Ela era alta e bem proporcionada; tinha uma cabeça modelada pelo tipo de inteligência que todo homem sonhava; a testa era espaçosa e alta, os olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino e uma boca com lábios carnudos. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que ela tinha todas as energias, a das paixões e a da vontade.
A luta da moça contra as injustiças sociais resultava de uma lembrança que era dolorosa para ela; Débora fora testemunha do massacre que sofreram os trabalhadores nas mãos da polícia de Barras nas terras da Boa Presença. Coronel Regilberto perguntou friamente:
- Que tem a minha filha que não se casa?
Débora já tinha a resposta para o pai
- Não está na hora.
O golpe foi tremendo ao velho coronel Regilberto, não tanto pela certeza que lhe dava de não ser amada, como pela circunstância de nem ao menos ficar-lhe o direito de estima. A confissão de Débora era um corpo de delito. Algumas más línguas do lugar diziam que a moça tendenciada a ser machona.
Quando a moça voltou da casa do tio Roniberto da capital Teresina, a moça achou-se em dolorosa situação; era obrigada a conviver com a separação da prima Letícia, a qual tinha o maior apreço. Pela sua parte, a prima também se achava acanhada, não porque lhe doessem as palavras que dissera um dia da viagem de volta a Barras, mas por causa da separação das duas.
A tia Lourdes soubera da paixão de Débora por Letícia sua filha e soube também da repulsa que tinham dos rapazes. Ela sabia que, pelo motivo de ser não poderem se amar, as moças se aborreciam facilmente. Letícia filha do irmão do coronel Regilberto, o senhor Roniberto, homem muito rico e igualmente excêntrico na capital Teresina, no comércio de couro de animais e palha de carnaúba, a fonte da riqueza. Letícia havia quatro anos cuidando da prima na capital entregue aos cuidados do pai.
Como o pai de Débora fizera muitas viagens pelo interior do Piauí e a mãe trabalhava no hospital Getúlio Vargas, parecia que gestou nela a maior parte da cuidar da prima Débora. Roniberto houve-se como pode na singular situação de pai não achar nada de estranho entre a sobrinha e a filha. Não conversava com a sobrinha; apenas trocava com ela as palavras estritamente necessárias para o bom relacionamento. A moça fazia o mesmo.
Certa noite, depois que chegou da Faculdade, Débora viu a prima e olhou séria para ela, pegou um lenço que pusera sobre o rádio ABC, e saiu sem dizer palavra.
Esta cena mostrou a Roniberto certa dificuldade das duas moças; mas ele confiava nelas, não porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por espécie de esperança no relacionamento das primas.
- É difícil entender a juventude de hoje, disse ele, mas sabe-se.
Contudo as desilusões com a filha Letícia iam-se sucedendo, e o pai, se a não alentasse a idéia do convívio com a prima, teria abatido as armas.
Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta para o irmão Regiberto em Barras. Lembrou-se de que era difícil expor-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que uma carta, por muita notícia que ele lhe tivesse, sempre seria lida.
Lourdes expôs francamente o procedimento de Roniberto desde que ali entrara na casa. O homem ouviu atentamente a mulher, procurou desculpar a filha, mas no fundo ele acreditava que Letícia tinha um mau-caráter herdado pelo lado da esposa.