melhores contos barrenses
terça com conto sem desconto
Joaquim Neto Ferreira apresenta:
O
VULTO DE BRANCO
Sábado à noite. O vento frio e
entrecortado varria os telhados do mercado público durante a noite. Dentro do
mercado público, a carne dependurada no gancho do açougue pinga gotículas de
sangue na cerâmica branca espargindo-se em desenhos incomuns e estranhos,
abstratos. O ar naquela noite tinha cheiro de morte.
Um vulto percorria com passos
emudecidos por debaixo das sombras das carnaúbas, evitando a luz opaca das
lâmpadas incandescentes dos portes. Para o lado da rua Walter Miranda, cães
ganindo com gritos de horror feito gritos humanos. Carnalmente o vulto de
branco sorrateiramente vagueava no ponto a ponto entre a luz e a escuridão.
Ela gritava, chorava,
ensandecia-se. Gritava-o sem consciência e sem propósito nenhum, sem nexo.
Gritava-o sem medo do que o medo de ser flagrada nas imensidões da noite fosse
revelado a alguém, a família. O vulto branco causando ânsia de vômito e é um pavor
corporado, um pavor frio como a cor névoa do vestido que usa, um pavor de todo
dela.
Ela rodeava o quarteirão do
mercado público insistentemente. Vinha à tona o pensamento intelectual de que o
vulto arriscava-se na noite gélida com maestria. A curiosidade humana reflete o
animal que não teme a morte, o animal explicado no porque vive, no que nos mata
e pode nos matar.
O homem dentro do mercado
público também a desconhecia, a base sólida da família o protegia, os
conceitos, a moral, a igreja. O vulto vagueando a procura de um orifício, de um
lugar a fim de esconder-se, a fim de perpetrar-se na escuridão, a fim de
ocultar-se do mundo, da realidade.
O homem sonolento parecia temê-la,
por lhe desconhecer a inteira extensão do mistério que a envolvia por inteiro.
Ele com o rádio ligado na Difusora de Barras ouvia o programa Avenida da
Saudade e parecia medir o infinito da escuridão ao poema narrado pelo locutor.
Barras um poema vivo gestado na
mente do boêmio apaixonado, do barrense sonhador. O objetivo do vulto transcendia
a razão e o sentimento criado a partir de um sentimento para si, o horror do
desconhecido, do mistério. O vulto branco vagueando de um lado ao outro, apenas
uma aparência, impensável, sensível do exterior ou da imaginação do homem.
Pensou com ele.
Uns têm — o sofrer — o eterno duvidar
das coisas:
- Há Deus ou não há Deus? Há
alma ou não há alma?
Ele não duvidava, simplesmente ignorava
as faculdades intelectuais do sobrenatural, as entidades místicas. O homem com
horror sentido na pele, na íris engrandecida dos olhos reluzindo um castanho
claro duvidava na grande, ignorava sem nome entre a fantasia e a realidade.
Talvez, o medo de fantasma, não
o remédio mais apraz; o horror de um morto, um falecido isso sim. Um morto para
ele parecia ser, pelo que é aos vivos, um fantasma na noite gélida e um
incomodo inevitável.
O homem erguia a lanterna com o
facho de luz para a escuridão. Caminhava macilentamente pela calçada e encarava
o horror, o desconhecido, o mistério de frente. O facho de luz da lanterna
falhava, apagava-se, ofuscavam-se, ele batia na lanterna querendo retornar a
luz, foi quando a sombra desesperadamente moveu-se rapidamente na escuridão
sombria.
Ela recolhia-se com o horror
que se espera quando o horror do mistério tão intenso arrasta-nos rente a
inevitabilidade que o mistério tem, o oculto. A sombra na escuridão
desesperava-se com o horror completo e negro da aproximação do homem. Isso parecia
qual um resgate.
Rajadas de vento na noite
açoitavam os cabelos das carnaúbas provocando um som temível e assustador.
- Ah, não me ofenda!
O horror do pensamento diante
do desconhecido. Ninguém como o homem tem tanto horror. Nem poderia nas veias e
na alma de um humano, o sangue ser tão íntimo a parecerem figuras de um sonho.
O vulto branco não conhecia. Olhou o relógio no pulso trêmulo. Marcava três e
meia da madrugada.
- É um sonho. Só pode ser um
sonho.
O sonho ás vezes são figuras da
realidade. Porque o mundo da fantasia onírica não só é ilusória, como é
fantasmagórica e até real. O homem esfregava os olhos na escuridão. Com as
pernas cambaleando aproximava-se do vulto encolhido por trás da carnaúba. Os
passos do homem arrastando-se nos paralelepípedos da rua eram passos ensaiados,
ordem unida.
Ele novamente esfregou os olhos
que mesmo que estivessem dentro de um
sonho, não seria um sonho, seria a realidade sonhada, a realidade dos sonhadores.
A lâmpada incandescente no
porte piscou três vezes. Morcego em vôos rasantes na escuridão não poderia
apagar a tortura que ele sentia. Não poderia despegar-se do olho no ser
misterioso. Não poderia esquecer o que era aquilo. Só uma coisa o apavorava. O
ser inerte.
- É agora que verei a morte
frente!
A frente dele estava o
inevitavelmente. Encolhia-se na sombra da carnaúba.
- Ah, seja quem for, poder
dizer o que quer! Não pode fugir.
O homem não podia esquecer o
que viu. Na hora em que ele a viu o espantou foi assustador.
- O que viu?
- O que dizer!
A vida é má e mais má ainda é a
morte. Mas quisera ele viver eternamente sem saber nunca o que a morte traz,
que hora chega, que hora vais. O tempo cessava. Parado ele ficou no momento. O
homem nunca se aproximou de tal horror. O pensamento envolvido, fechado dentro
de si.
O vulto de branco tragado pelo
crack, pela pedra branca, movia-se para um mundo inexplorado, o mundo sem
volta, o mundo perdido, o mundo reservado aos mortos, aos mortos vivos.
- O que está fazendo com sua vida?
- Eu só quero viver, moço! Me
ajude!
- Esse é primeiro passo, pedir
ajuda antes que seja tarde!