PRIMEIRO CAPÍTULO DO MAIS NOVO ROMANCE BARRENSE
Menino moreno
I
O relógio marcava vinte e três
horas. Pelo céu escuro da rua 10 de novembro uma rasga mortalha passou sombria,
por cima lá de casa. Ouvi a voz de mamãe dizendo:
— Diz que é sinal que tem um
perto de morrer.
E o meu gemido de medo deitado na
rede era mais alto do que os roncos do meu irmão que já deitado na rede
tornava-se cada vez mais alto. E eu a todo um rumor abafado me tremia. Parecia
que meu coração de tanto acelerar com a combustão do medo queria sair de dentro
do peito.
— Acende a lamparina que este
menino é medroso.
O pedido de mamãe acordando meu
irmão deixou-me mais tranqüilo. Coitado dele tinha que acordar do sono dos
justos para levantar e acender a lamparina perto de mim. Não gostava de dormir
no escuro, mas mamãe dizia que era para economizar o óleo diesel.
Eu ouvia nítido lá do quarto novamente
o som por cima do telhado o grito da rasga mortalha voando no mês de janeiro de
1987. Corri para rede de mamãe, já chorando.
Quando meu irmão acendeu a lamparina já vinha entrando no escuro de portas
adentro dormir no outro quarto com mamãe.
Às quatro horas da manhã nós
levantamos às carreiras para ir para o mercado público no centro de Barras. Lá
do quarto com a lamparina ainda acesa, eu via mamãe ajoelhada perto do velho
oratório da vovó que coberto com um pano branco e com a imagem de Jesus Cristo em cima, um lindo Jesus Cristo de braços abertos pregado numa cruz, um Jesus
Cristo que fazia qualquer um pensar que era de verdade e que estava vivo.
Saímos para o mercado e cada um
levava uma coisa para ajudar mamãe na labuta diária. O balde pequeno, eu que
levava, já o maior meu irmão e o jacá arrumadinho quem levava era mamãe na
cabeça. A gente chegava na barraca ainda
no escuro:
— Sou umas das primeiras a chegar
e quem cedo madruga, Deus ajuda.
Antes de arrumar as coisas, mamãe
rezava e não deixava ninguém olhar os seus segredos dos pés da reza para
começar bem o dia. Fiquei espiando ela rezar, se benzer e com os olhos
dormentes de sono sentado na cadeira esperando a barra avermelhada de o dia
nascer.
O que passarei a narrar agora é um pouco do que pedi a Deus buscando na
memória fatigada um pouco da minha estória e poder contá-la do que vivi na
terra de marataoan, quando vim lá do Mocambo para morar em Barras. Não é nenhuma
estória de artista, de estrela, mas é minha estória, ficção é claro.
O ano foi o
de 1987 e nele um dos momentos mais felizes. O
que escrevo e não posso tirar nunca
da minha lembrança são as
aventuras que vivi quando criança. Nos pés de parede das casas alheias, humilhado na
hora de assistir o Jaspion, também Jeronimo o herói do sertão e os changeman, porque lá
em casa não tinha televisão. Também com a baladeira e o alforje cheio de pedras
de piçarra, eu caçava as rolinhas fogo pagou que cantavam livre nos
matagais para o lado do Curujal. Ás
vezes, eu banhava com a água do poço de dona Severina e comia manga
verde das mangueiras do sítio
Curujal.
Nos caminhos
tortuosos de areia da rua 10 de novembro, eu
fui menino que andou descalço e na casa de
titio, o sapateiro na rua Gervásio Pires joguei pião, malinei e fiz danação. Pelas manhãs no mercado público junto da barraca
de comida de mamãe acendia o carvão no fogareiro para fazer o fogo do
café ferver. A casa antiga lá da rua 10 de novembro onde me criei não tem as
mesmas portas, janelas e até os meus amigos de jogar futebol ficaram diferentes e até uns já morreram e outros foram
embora da rua também.
Lembro que já entrara o mês de fevereiro e uma saudade de mamãe começou a me
agoniar depois que ela partiu pelo portão azul da escola. O colégio Honorina
Tito inteiramente lotado de meninos no primeiro dia de aula. O ano de 1987, eu saia
da alfabetização no Colégio Casulo de frente o senhor Pote, um colegiozinho que ficava perto da igreja dos crentes na
rua Gervásio Pires. Eu já estava na primeira série e lembro bem da diretora que organizava
todos em fila indiana por turma e série para cantar o Hino Nacional.
Mamãe deixou-me
no colégio e voltou para a barraca no mercado público vender comida. Uma hora
da tarde marcava o relógio e eu olhando para o portão da escola, via que não se
vencia a minha saudade com os novos colegas de escola, eu me contentava em ver
o F. Cardoso de uma hora da tarde rumar para Teresina e ele buzinava quando parti levando a saudades de alguns.
E de súbito me irrompeu uma
vontade de fugir daquele local antes de entrar na sala de aula. Iria de volta
para o mercado público. Terminado o Hino Nacional saímos em fila para a classe.
Quando entrei na sala de aula fui até a janela para iludir o desejo pertinente
de fugir da escola. Andei pela sala toda. Voltei para minha carteira. Vi um sujeito passando
pelo corredor, o vigia, um homem alto que botava medo em quem metesse a besta
de fugir dali.
Fiquei na sala para o primeiro
dia de aula. Uma hora depois de a aula começar uma idéia apareceu na minha
cabeça e sentado perto da janela olhava para o fundo da Cooperativa Mista, com
a tentação no meu encalço de pular o muro alto e fugir pelo lado da Cubana. E o
diabo atentando para eu fugir. Eu ia mesmo fugir se não fosse pela pisa que
levaria de mamãe. O relógio marcava três e dez. Hora do recreio. Sai desconfiado
para o pátio. Fui até a cantina pegar o
copo de leite pau de índio com bolacha, ainda bem que o Sarney era bonzinho naquele tempo.
Depois que sentei na calçada para
merendar, lembrei-me da redação que a professora Socorro pediu para a turma trazer no outro dia. Fiquei merendando e batendo cabeça com a redação, não conseguia juntar as idéias, mas
foi aí que veio á tona a semana santa, as horas de luxúria nas brincadeiras com as meninas lá no Mocambo. Continuei com o enredo na cabeça e tudo foi clareando.
Mamãe tinha me dado para comprar
din din, dois cruzeiros, aliás, dois cruzeiros novos, sei lá o dinheiro mudava
mais de nome que o aluno Kiko, o Golias da sala. Por falar em Kiko, esse era um menino da peste.
Metido a valente. Todos o temiam na escola. Quando Kiko se aproximou de mim,
apalpei o bolso. Se ele soubesse que eu tinha dinheiro, ele iria tomar tudo.
Saí
pelo corredor como um ladrão, imperceptível, rápido, alcançando a porta da sala
para esconder-me dele. Bateu a campainha todo mundo correu para a classe. Kiko
olhava para mim. Fiz que não o vi, e saí andando devagar para sentar na minha
carteira. Mas com uma vontade irresistível de dar uma carreira. Se corresse, ele
desconfiaria e caçaria briga. Era muito cedo para enfrentar o temível Kiko.
Quando deram cinco horas a
campainha bateu para irmos embora. Andei pela rua são José, parei para olhar o
Estádio Helvídio Nunes. As pedrinhas da reforma do Estádio ringiam sob meus
sapatos quibambas. Dez minutos eu vi a casinha do pai de João Paulo já na rua
10 de novembro. Ouvi uma pessoa correndo atrás de mim com as passadas largas.
João Paulo vinha do colégio da Tia Ducarmo, o colégio dos ricos como chamava os meninos do Honorina Tito. Ouvi o barulho seco do sapato dele
chutando a piçarra da rua e ele tinha um sapato dos bons, uns sapatos Rainha, lançamento que o pai dele trouxe de São Paulo.
Eu disse para o João Paulo:
"Vamos jogar no campo da beira do rio marataoan". ele disse: ainda dá tempo?". O
pai de João Paulo começou a me olhar e depois para meu amigo. E levantou-se
caminhando rapidamente no terreiro. Olhei para o homem: ele ainda me fitava.
Levantou-se e veio até nós. Um frio correu-me o corpo todo.
— João Paulo vai é fazer o dever
de casa!
Explicou-me.
— Ah! É que nós iríamos jogar
bola?
— Ele não pode porque o avô dele está
doente.
— Ah! Quem o vovô? Ele adoeceu? perguntou João Paulo.
Nisto dona Esmeralda o chamou
para tirar a farda do colégio. O melhor era sair dali, aquele povo não gostava
de mim, diziam que eu era menino de rua e ainda por cima criado solto. Podia
desencaminhar o filho deles. Palavras daquele jeito me tiravam o sangue-frio.
Do outro lado da casa de João Paulo ficava o bar das mulheres perdidas, o
popular cabaré da Zulmira. Havia uns pés de cajus na quinta do velho Corano.
Pulei para dentro dele. Miúdo passou por mim, dizendo:
— Quimneto, se o Virgulino pega
você aí dentro?
Ri-me dele. Só se o diabo do
Virgulino adivinhasse! Ouvi um grito de aboio vindo lá da entrada da rua São
José. O coração acelerou. Quando olhei de cima da cerca de arame, Virgulino o
encarregado do velho vinha a passos largos olhando para a quinta de capim verde
com o gado dentro. Na portinhola do curral tinha um pessoal mostrando o gado.
Pulei a cerca de arame quase na frente do homem, que me disse aborrecido:
— Eu não quero que pegue caju aí
dentro, viu?
Fiquei com medo. Era a primeira
vez que uma pessoa estranha me repreendia desde que vim morar na rua 10 de
novembro. Virgulino me olhou de cara feia, e me deu um cocorote. Bateu na minha
cabeça que os passarinhos rodearam. Se fosse com um pau, estaria perdido.
Enfiei o caju no bolso da calça jeans e o outro ele jogou fora. Nem desconfiava
do outro no bolso.
Virgulino me olhou com a cara
fechada. Já se ouvia dizer pela rua que o homem era miserável com as coisas do
velho Corano. Estava com medo dele, com a impressão de que se contasse a mamãe,
ela iria me bater. Se ninguém soubesse, estaria salvo.
A CADA FINAL DE MÊS UM NOVO CAPÍTULO. ACOMPANHE ESSA EMOCIONANTE ESTÓRIA FICCIONAL