Fôrmas em Prosa
Muito mais complexo que o problema das fôrmas poéticas é o das formas em prosa. Primeiro, porque não se trata apenas de descrevê-las, como fizemos com as primeiras, mas de diferençá-las. Segundo, porque constitui problema ainda aberto e de notória atualidade. A caracterização e o histórico das fôrmas poéticas pertencem à retórica tradicional, enquanto a distinção e a análise das formas em prosa constituem questões da moderna teoria literária.
Antes do século XVIII, quase tão-somente a poesia é que interessava aos teóricos da Literatura, que entendiam por poesia a lírica, a épica e o drama. A tal ponto as formas em prosa ostentavam menos cotação que os poucos estudos acerca do romance anteriores àquela centúria via de regra tinham por objetivo subestimá-lo, considerá-lo inferior à epopéia, e mesmo à tragédia e à historiografia, ou satirizá-lo: Langlois (dit Francan), Le Tombeau des Romans ou il est discouru. I: Contre les Romans; II: Pour les Romans (1626), Charles Sorel, Antiroman ou I'Histoire du Berger Lysis (1631) e De Ia Cormaissance des Bons Livres, ou Examen des Plusieurs Auteurs (1672), Cirano, Lettre contre un Liseur de Romans (1663), Boileau, Dialogue sur les Héros de Roman (1665), Pierre-Daniel Huet, Traité de l'Origine des Romans (1670), A. Furetiere, Le Roman Bourgeois (1704),1 anônimo, Roman Nouveau (1683), Len 1 Álvaro Uns, Jornal de Letras, 7" série, Rio de Janeiro, O Cruzeiro [1963], pp. 312-313; Arend Kok, Introdução, notas e edição crítica do Traité de l'Origine des Romans, de Pierre-Daniel Huet, Amsterdam, N. V. Swets e Zeitlinger, 1942, pp. 51 e ssglet-Dufresnoy, De l'Usage des Romans (1734).2
Por outro lado, tais doutrinadores se referiam mais à novela que ao romance. Com o Romantismo e a conseqüente criação do romance no sentido moderno do termo, as teorias a seu respeito entraram a destronar a velha preocupação pela poesia épica e pelo teatro.3 De tal modo o romance ganhou prestígio entre os estudiosos de teoria literária que um erudito de nome A.-I. Delcro não teve dúvidas em compilar um Dictiormaire Universel Littéraire et Critique des Romans... (1826).4 No entanto, como ainda fosse muito arraigado o conceito que distinguia a poesia épica e a dramática com foros de nobreza artística, os comentaristas do romance ora tendiam a considerá-lo uma "enciclopédia poética", ora uma "pseudo-épica", Seja como for, graças ao êxito alcançado pelo romance, simultaneamente com “o ensaio jornalístico, a peça dramática de tom sério e final feliz, etc.", as doutrinas clássicas entraram em crise.
Menos bafejados foram o conto e a novela, o primeiro, porque tratado como romance curto (sob o designativo de novelia, termo emprestado do Italiano), num embaralhamento que ainda hoje provoca confusões, e o segundo, porque confundido com o romance, A Friedrich Schlegel se devem as primeiras teorizações acerca do conto ou novela, tendo por base II Decamerone, de Boccaccio, reunidas em trabalho publicado em 1801.7 Até fins do século XIX, os estudos acerca da prosa da ficção eram parciais, breves ou ainda miados a antigos e superados conceitos.
Todavia, as preceptivas literárias então aparecidas, de caráter anormativo, ao contrário do que postulava a tradição, já começavam a abrigar doutrinas a respeito do conto e do romance e mesmo da novela, geralmente com o equívoco apontado, No setor do conto, destacam-se as idéias de Poe, pioneiras e ainda atuais. Em fins do século XIX é que entram a surgir os primeiros grandes teorizadores, contemporaneamente ao desenvolvimento atingido pelo conto nas literaturas ocidentais.
E ao longo deste século, o número de estudiosos do assunto cresceu 2 KIaus Friedrich, "Einc Thooric dcs "Roman Nouvcau" , in Romanistisches Jahrbuch, Romanisches Seminar, Hamburg, XIV Band, 1963, p. 105. 3 Rcné Wcllck, Hisroria de la Critica Moderna (1750-1950), tr. espanhola, 4 voIs. Madrid, Gredos, 1959, vol. lI, p. 28. a olhos vistos: Brander Mathews, Carl H. Grabo, G. R. Chester, Elisabeth Bowen, Sean O'Faolain, V. Propp, e tantos outros, especialnente de língua inglesa. .. ]
Em vernáculo, a mais remota tentativa de estabelecer os limites do conto se encontra em Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo. Em dois diálogos, os de nº X e XI, procurou marcar as diferenças entre os "contos", identificados com as narrativas folclóricas, e as "histórias", com as novelle boccaccianas. Chegou, inclusive, a frisar que os contos' 'não querem tanto de retórica", ou seja, pedem a brevidade. A relevância das distinções feitas pelo escritor português do Barroco não escapou a um estudioso do porte de Menéndez Pelayo, para quem ele' 'tentou antes de qualquer outro reduzir a regras e preceitos a arte infantil dos contadores, dando-nos de passagem uma teoria do gênero e uma indicação de seus principais temas".
Somente em nossos dias a teoria do conto voltou a merecer atenção em Portugal, desta vez com um trabalho exaustivo e sistemático, Biologia do Conto (1987), de Armando Moreno. Entre nós, tirante observações esparsas de Machado de Assis, a primeira teoria do conto que se conhece, é da autoria de Araripe Jr., no "Retrospecto do Ano de 1893", publicado na Semana de 1894 e mais tarde enfeixado em Literatura Brasileira. Movimento de 1893. O Crepúsculo dos Povos (1896).
Um vasto hiato se fez daí por diante até que o assunto voltasse a ocupar a crítica, inicialmente graças a Herman Lima e as Variações sobre o Conto (1952). Quanto à teoria do romance, um dos primeiros estudos de conjunto data de 1883: Beitrage zur Theorie und Technik des Romans, de F. Spielhagen. Depois dele, a quantidade de teorizadores vem aumentando progressivamente até os nossos dias, numa verdadeira pletora de doutrinas e interpretações: Henry James, Albert Thibaudet, Percy Lubbock, E. Wharton, E. Muir, E. M. Forster, R. Koskimies, Roger Caillois, Robert Liddel, G. Lukács, Wayne C. Booth, Lucien Goldman, F. K. Stanzel e tantos outros. 8 Menéndez Pelayo, Orígenes de la Novela, 4 vols., Santander, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1943, vol. III, p. 150. A c::ssc respeito, ver Walter Pabst, LA Novela Corra en La Teoria y en La Creación Literaria, Ir. espanhola, Madrid, Gredos, 1972, pp. 187 e ss., - para quem é mais do que evidente a influência de li Libro del Cortegiano (1528), de Castiglione, e de I Diporti (1550), de Girolamo Parabosco, sobre Francisco Rodrigues Lobo. Ver o capítulo dedicado ao estudo do romance, mais adiante, e a bibliografia infine.
Nem por causa da avalancha de estudos referentes à prosa de ficção se pode dizer que o problema está resolvido. Os fatores que determinam o caráter aberto e complexo dessa questão podem ser arrolados do seguinte modo: em se tratando de novela e de romance, é alto o débito para com a poesia narrativa (canções de gesta, epopéias). Historicamente, ambos se prendem à poesia épica, ao menos na generalidade dos casos: por certo que seria lícito objetar com narrativas clássicas (como Dáfnis e Clói, por exemplo) que não parecem dever nada à poesia épica, mas constituem exceções à regra.
Ou, por outra, podem ser consideradas manifestações proto-históricas da novela, que veio a despontar na Idade Média, pelo processo de prosificação das canções de gesta. Outra determinante que perturba a clareza desejável nesse terreno: cada país, ou área de cultura, ou época histórico-literária, ou tendência crítica, defende idéias próprias acerca das fôrmas em prosa. A essas contingências deve-se acrescentar que o vocabulário da crítica literária, apesar do esforço de alguns e do desejo duma maioria consciente, ainda está longe de alcançar precisão e univocidade.
Outras causas podem ser aduzidas para explicar a dificuldade em se chegar a uma forma de consenso nessa matéria. Em primeiro lugar, as relações entre atividade literária e as outras artes e modos de conhecimento: além de se moverem nas duas direções, desenrolam-se praticamente dentro do mesmo contexto histórico. Essa contemporaneidade e interação apontam para o fato de que a prática literária, enquadrada que está na sociedade que lhe dá origem e razão de ser, destina-se a servir, em qualquer dos sentidos do vocábulo "servir". 10 Em segundo lugar, a história das fôrmas literárias mostra-nos um dinamismo que afasta a hipótese das soluções definitivas.
Tomando como exemplo o romance, observa-se que entre suas primitivas modalidades, datadas do século XVIII, e as atuais, operou-se visível metamorfose. Tanto assim que permitiu a alguns críticos apregoar o desaparecimento do romance como expressão de cultura, ou a sua transformação em uma estrutura nova. na verdade, entre Pamela (1740), de Samuel Richardson, tido como o primeiro exemplar no gênero, e as criações do "nouveau roman", nos anos 60, passando por Balzac, Stendhal, Dostoievski, Tolstoi, Proust, Joyce e outros, parece escancarar-se um abismo. 10 A esse propósito, ver Etierme Souriau, La Correspondence des Arts, Paris, FIanunarion, 1947, e Alfonso Reyes, EI Deslinde, México, E1 Colégio de México, 1944.
É certo que deve haver um resíduo, um lugar-comum do ponto de vista da estrutura básica, para que as obras desses prosadores continuem a merecer a designação de "romance". Mas também está fora de dúvida que exibem mudanças de toda ordem, numa espécie de corrida de saltos para atingir o melhor resultado na visão da realidade. Um crítico que adotasse a concepção setecentista de romance para julgar a obra, por exemplo, de um James Joyce, provocaria equívocos e perplexidades no leitor, entre os quais eventualmente o de recusar-se a classificar Ulysses de romance. Idêntico raciocínio aplica-se ao conto: entre as Mil e Uma Noites e suas configurações modernas notam-se diferenças que vão desde a técnica até o significado, ou desde o estilo até o conteúdo.
Um terceiro fator interfere no bom entendimento nesse particular: alguns críticos têm encarado apressadamente o problema das fôrmas em prosa. Orientados por conceitos duvidosos, ou polêmicos, por vezes adotando esquemas mecânicos, pseudocientíficos, ou guiados por má consciência, apressam-se em subestimar a complexidade do problema. E acabam por aderir a conceitos fundados na "forma externa" das obras, pondo em segundo plano a "forma interna" e ignorando que existe, para além desta, uma camada semântica que não pode ser descartada sem comprometer a função analítica e interpretativa e judicativa que desempenham.
Em decorrência, o critério que adotam para discernir as diferenças entre o conto, a novela e o romance é quantitativo: a seu ver, a distinção residiria no volume de páginas. Preconizam que conto é sinônimo de narrativa curta, e vice-versa, toda narrativa curta se classifica no setor do conto. Chegam ao requinte de firmar uma distinção numérica entre o que chamam de "conto curto" ("short-short story") e "conto longo" ("long-short story"): aquele teria cerca de 500 palavras, o segundo, entre 500 e 15.000 a 20.000 palavras. W. F. Thrall, A. Hibbard e C. H. Hohrum, A Handbook 10 Li1era1ure, 5& 00., New York, Odyssey, 1962, p. 458. Outros autores ponderam que o conto short story") "oscila entre o conto curto ('short-short story') de menos de 2.000 palavras e a 'novclette', com mais de 15.000" (Northrop Frye, Sheridan Bakcr, Gcorge Perkins, The Harper Handbook 10 Li1eralUre, New York, Harpcr & Row, 1985, p. 430). E há quem considere outro número: tendo menos de 10.000 vocábulos, trata-se de conto (Harry Shaw, Dictionary of Li1erary Terms, New York, McGraw-Hill Book Co., 1972, p. 343).
E um outro estudioso, decerto alertado para o gratuito de tais números, defme-se em "termos atléticos: se tomarmos a novella como um livro de 'distância média' ('middlcdistance'), o conto se enquadraria na classe dos 100/200 metros" (J. A. Cuddon, A Dic1ionary of Li1erary Terms, reviscd 00. Quanto à novela, que os ingleses chamam novelette e os franceses, nouvelle, mais longa que o conto e menos que o romance, de 100 a 200 páginas, aproximadamente. E romance seria toda narrativa com mais de 200 páginas.
Na verdade, o critério quantitativo não é de todo falso nem desprezível. Contudo, deve ser empregado apenas como auxiliar do critério qualitativo, e a posteriori, porquanto a simples contagem das páginas impossibilita afirmar com precisão o tipo de narrativa em causa. O aspecto numérico pode confundir o observador que relegar a segundo plano o conteúdo e a estrutura das obras. Se é verdade que o conto encerra breve dimensão, também é certo que isso decorre de fatores intrinsecos: os contos não são contos porque têm poucas páginas, mas, ao contrário, têm poucas páginas porque são contos.
Tomemos, à guisa de ilustração, o caso de O Alienista: uma das obras-primas do conto machadiano, tem cerca de 100 páginas nas edições vulgares, quase o tanto de Iracema, o romance de José de Alencar. A ser usado o esquema quantitativo, de imediato se concluiria que as duas narrativas pertencem à categoria do conto, ou do romance. Nada mais enganoso. Por certo que se trata dum caso sui-generis, já que nem todos os contos possuem a extensão de O Alienista, e não é comum um romance de proporção igual à de Iracema.12 na maioria dos casos, o critério quantitativo pode ser empregado, mas deve ser confirmado pelo qualitativo, que impede chamarmos de conto a embriões ou capítulos de romance, a poemas em prosa, a apólogos, a fábulas, a crônicas, etc., todos marcados pelo signo da brevidade.
Idêntica confusão à existente entre O 11 lt a lj York, Doubleday & Co., 1976, p. 623). A esse respeito, ver lan Reid, The Shon Story, London, Melhuen and Co., Lld., 1977, p. 10. Outros autores há que propõem uma distinção baseada na qualidade, não na extensão, como Brander Matthews ("The Phi1osophy of lhe Short-Stoty", in Pen and Ink, New Y ork, Charles Scribner's Sons, 1902 pp. 75-106) e J. Berg Esenwein (Writing the Short-Story: a Practical Handbook on the Rise, Structure, Writing, and Sale of the Modern Short-Story, New York, Hinds, Noble and Elredge, 1909, pp. 17 e ss.).
Análogo exemplo pode ser colhido em Davam grandes passeios aos domingos... (1941), de José Regio: a despeito de alguns críticos, fundados nas suas 115 páginas, a classificarem de novela, a obra apresenta estrutura de conto. Decerto apercebendo-se disso, o autor incluiu-a na terceira edição de Histórias de Mulheres (1968), volume de contos cuja primeira edição apareceu em 1946. E sagazmente classificou-as de "conto e novela", mas o rocurso antes mostra que esconde a consciência de haver semelhança de estrutura entro as narrativas, mal encoberta pela 'l'aga designação posta em subtítulo.
Alienista e Iracema haveria entre certas obras de mais de 200 páginas. D. Quixote e Madame Bovary servem de exemplo. Quem, refletidamente, poderia enfaixá-los sob um mesmo rótulo, novela ou romance? A rigor, aquele é novela, e esse: romance. E, como sabemos, o primeiro é mais volumoso que o segundo. Assim, se o critério fosse o número de palavras, ambos teriam de ser romances. Estaria correta a classificação? A resposta só pode ser dada pelo critério intrínseco, e esse responderia que o D. Quixote é novela, e Madame Bovary, romance.
Infere-se, assim, que o critério mais conveniente para se erguer uma distinção rigorosa entre o conto, a novela e o romance, é o qualitativo, que consiste em procurar ver a obra de dentro para fora, analisar-lhe e julgar-lhe os componentes, de forma, e de conteúdo. Somente depois de bem sopesá-los é que estaremos aptos a uma classificação válida e precisa. Nesse ponto, convoca-se o critério quantitativo a fim de corroborar ou negar o resultado da análise. Não raro, confirma. Mas, que ingredientes são esses? Enfileirados como se segue, servirão de base para os capítulos dedicados a cada uma das fôrmas em prosa: a ação, as personagens, o tempo, o espaço, a trama, a estrutura, o drama, a linguagem, o leitor, a sociedade, os planos narrativos, etc.
Porque comuns ao romance, à novela e ao conto, podem levar ao equívoco de supor improcedentes todas as tentativas de estabelecer fronteiras entre as três fôrmas. O fato de o conto abranger ingredientes do romance não invalida a distinção entre as duas fôrmas, uma vez que se movem no mesmo território - a prosa de ficção. O que resta firmar é a sua diferença, calcada na densidade, intensidade e arranjo dos componentes: a título de exemplo, as personagens do conto discrepam das que protagonizam o romance e a novela por sua densidade, intensidade e estrutura. A simples exibição de personagens não distingue o conto das fôrmas vizinhas, mas, sim, a circunstância de serem, via de regra, personagens planas, surpreendidas no momento privilegiado de sua evolução.
Por fim, considerar falaciosa a discriminação entre as fôrmas da prosa em razão de os elementos expressivos do romance poderem estar presentes no conto ou na novela, pressupõe saber, de antemão, o que caracteriza cada fôrma de per si. Autêntico círculo vicioso. E assim retomamos ao ponto de partida: a distinção há de ser fundada mais na função dos ingredientes que na sua mera presença ou no volume de páginas.
E se por função entendermos traços característicos, haveremos de convir que determinados traços implicam determinada forma, e esta, reciprocamente, pressupõe aqueles. Por outros termos, cada forma tem certas implicações, de modo que onde essas se encontrem, estaremos em presença daquela: nesse caso, implicações e formas se equivalem. Vinculadas por elos de necessidade, onde houver umas haverá outras, a ponto de todas as divergências em torno de qualquer texto literário promanarem de controvérsias acerca dos traços que identificam as fôrmas (as espécies e os gêneros, visto que o raciocínio pode ser estendido aos outros graus da escala genológica).
Assim a tarefa classificatória dos textos dentro do universo dos gêneros não é, como ainda podem pensar estudiosos menos informados ou menos atentos, o objetivo final da critica. É, com efeito, o ponto de partida, não o de chegada. E se insistimos nesse pormenor é para evitar que se distorçam os fatos. Se não soubermos em que categoria ordenar a narrativa que acabamos de ler, seja ela qual for, principiamos por não saber como julgá-la, visto que, é bom repeti-lo mais uma vez, não se pode submeter "A Cartomante" e D. Casmurro aos mesmos padrões analíticos e interpretativos. Se ninguém duvida que ostentam características peculiares às respectivas fôrmas, nem por isso se diria que não procede levantar o problema da classificação ou reconhecer-lhe a presença atuante no próprio ato de ler.
Essa questão extrapola, na verdade, os limites dos gêneros, sem perda de pertinência. Onde situar Os Sertões? na Sociologia? na ficção? na História? No ensaio? Será indiferente localizar a obra num ou noutro desses nichos, ou simultaneamente em mais de um? Para finalizar estas preliminares ao exame das fôrmas em prosa, assinalemos que a distinção entre o conto, a novela e o romance e sua caracterização, que ocuparão os capítulos subsequentes, devem ser entendidas e avaliadas em seu propósito esclarecedor.
Trata-se de uma proposta de sistematização de conceitos numa área ainda sujeita a controvérsias. Por outro lado, voltaremos nossa atenção para as características persistentes no decurso da história das formas em prosa: o que faz que tanto as obras de Margarida de E. D. HiIsc!J, Validily in Interpretation, Ncw HavenjLondon, Yalc Univcrsity Press, 1967, pp. 89 \e ss. Navarra quanto as de Tchecov ou Maupassant ou Dalton Trevisan ou Julio Cortázar sejam rotuladas de "contos" decorre de empregarem a mesma estrutura narrativa, apesar de todas as mudanças temáticas, estilísticas ou culturais. Idêntico raciocínio se aplica a Madame Bovary, Ulysses, Contraponto, Aparição, Avalovana; ou a Amadis de Gaula, D. Quixote, O Tempo e o Vento, A Barca dos Sete Lemes, Grande Sertão: Veredas. É que, ao longo das variações temporais, observa-se a permanência de um núcleo formal, posto que igualmente sensível à ação do tempo, e é tal núcleo que interessa acompanhar e descrever. Em suma, uma perspectiva centrada no substantivo - a estrutura das fôrmas em prosa -, não no adjetivo - suas modulações extrínsecas.
Tal estrutura básica não decorre de um modelo ideal, que se armasse em abstrato e se pusesse em confronto com os textos, a ver se eram congruentes entre si. A lógica interna das narrativas é que determina a idéia de que, por sobre as diferenças particulares, obedecem a um arcabouço primordial, comum a todas. É essa estrutura irredutível, ou a que se reduzem as narrativas, que se representa no esquema gráfico que fecha o estudo das três principais modalidades em prosa. Desse modo, as exceções ou as experiências de vanguarda (não raro de incerta classificação, ou determinantes de um remanejamento na árvore dos gêneros) somente serão consideradas quando úteis à compreensão da unidade intrínseca do conto, da novela e do romance. Destaca-se, nesse quadro, o chamado "conto moderno", etiqueta duvidosa por induzir a pensar numa estrutura própria, diversa da que se encontra no "conto tradicional". na verdade, essas denominações revestem categorias históricas, e a primeira assinala apenas o emprego de técnicas novas para engendrar a velha estrutura.
Tratando-se de conto, não importa se escrito em nossos dias, ou nos séculos anteriores, sempre exibirá as mesmas características fundamentais. Ainda que o conflito não seja aparente, ou que o método utilizado pelo contista seja o indireto, por meio de A propósito do "conto moderno", ver A. L. Bader, "The Structure of the Modern Short Story", College English, 7 (November 1945), pp. 86-92, in Charles E. May (00.), Shorr Srory Theories, Ohio University Pn=, Ohio, 1976, pp. 107-115. implicações, a narrativa continua sendo conto. Quando não se estrutura ao redor de uma trama, visível ou implícita, em razão de o autor visar a um texto sem núcleo dramático, "em que nada acontece", o resultado é o poema em prosa, capítulo ou embrião de novela ou romance, ou crônica.
Fonte: MASSAUD MOISÉS
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