terça-feira, 7 de fevereiro de 2012


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Joaquim Neto Ferreira apresenta: 

O VULTO DE BRANCO

Sábado à noite. O vento frio e entrecortado varria os telhados do mercado público durante a noite. Dentro do mercado público, a carne dependurada no gancho do açougue pinga gotículas de sangue na cerâmica branca espargindo-se em desenhos incomuns e estranhos, abstratos. O ar naquela noite tinha cheiro de morte.
Um vulto percorria com passos emudecidos por debaixo das sombras das carnaúbas, evitando a luz opaca das lâmpadas incandescentes dos portes. Para o lado da rua Walter Miranda, cães ganindo com gritos de horror feito gritos humanos. Carnalmente o vulto de branco sorrateiramente vagueava no ponto a ponto entre a luz e a escuridão.
Ela gritava, chorava, ensandecia-se. Gritava-o sem consciência e sem propósito nenhum, sem nexo. Gritava-o sem medo do que o medo de ser flagrada nas imensidões da noite fosse revelado a alguém, a família. O vulto branco causando ânsia de vômito e é um pavor corporado, um pavor frio como a cor névoa do vestido que usa, um pavor de todo dela.
Ela rodeava o quarteirão do mercado público insistentemente. Vinha à tona o pensamento intelectual de que o vulto arriscava-se na noite gélida com maestria. A curiosidade humana reflete o animal que não teme a morte, o animal explicado no porque vive, no que nos mata e pode nos matar.
O homem dentro do mercado público também a desconhecia, a base sólida da família o protegia, os conceitos, a moral, a igreja. O vulto vagueando a procura de um orifício, de um lugar a fim de esconder-se, a fim de perpetrar-se na escuridão, a fim de ocultar-se do mundo, da realidade.
O homem sonolento parecia temê-la, por lhe desconhecer a inteira extensão do mistério que a envolvia por inteiro. Ele com o rádio ligado na Difusora de Barras ouvia o programa Avenida da Saudade e parecia medir o infinito da escuridão ao poema narrado pelo locutor.
Barras um poema vivo gestado na mente do boêmio apaixonado, do barrense sonhador. O objetivo do vulto transcendia a razão e o sentimento criado a partir de um sentimento para si, o horror do desconhecido, do mistério. O vulto branco vagueando de um lado ao outro, apenas uma aparência, impensável, sensível do exterior ou da imaginação do homem. Pensou com ele.
Uns têm — o sofrer — o eterno duvidar das coisas:
- Há Deus ou não há Deus? Há alma ou não há alma?
Ele não duvidava, simplesmente ignorava as faculdades intelectuais do sobrenatural, as entidades místicas. O homem com horror sentido na pele, na íris engrandecida dos olhos reluzindo um castanho claro duvidava na grande, ignorava sem nome entre a fantasia e a realidade.
Talvez, o medo de fantasma, não o remédio mais apraz; o horror de um morto, um falecido isso sim. Um morto para ele parecia ser, pelo que é aos vivos, um fantasma na noite gélida e um incomodo inevitável.
O homem erguia a lanterna com o facho de luz para a escuridão. Caminhava macilentamente pela calçada e encarava o horror, o desconhecido, o mistério de frente. O facho de luz da lanterna falhava, apagava-se, ofuscavam-se, ele batia na lanterna querendo retornar a luz, foi quando a sombra desesperadamente moveu-se rapidamente na escuridão sombria.
Ela recolhia-se com o horror que se espera quando o horror do mistério tão intenso arrasta-nos rente a inevitabilidade que o mistério tem, o oculto. A sombra na escuridão desesperava-se com o horror completo e negro da aproximação do homem. Isso parecia qual um resgate.
Rajadas de vento na noite açoitavam os cabelos das carnaúbas provocando um som temível e assustador.
- Ah, não me ofenda!
O horror do pensamento diante do desconhecido. Ninguém como o homem tem tanto horror. Nem poderia nas veias e na alma de um humano, o sangue ser tão íntimo a parecerem figuras de um sonho. O vulto branco não conhecia. Olhou o relógio no pulso trêmulo. Marcava três e meia da madrugada.
- É um sonho. Só pode ser um sonho.
O sonho ás vezes são figuras da realidade. Porque o mundo da fantasia onírica não só é ilusória, como é fantasmagórica e até real. O homem esfregava os olhos na escuridão. Com as pernas cambaleando aproximava-se do vulto encolhido por trás da carnaúba. Os passos do homem arrastando-se nos paralelepípedos da rua eram passos ensaiados, ordem unida.
Ele novamente esfregou os olhos que  mesmo que estivessem dentro de um sonho, não seria um sonho, seria a realidade sonhada, a realidade dos sonhadores.
A lâmpada incandescente no porte piscou três vezes. Morcego em vôos rasantes na escuridão não poderia apagar a tortura que ele sentia. Não poderia despegar-se do olho no ser misterioso. Não poderia esquecer o que era aquilo. Só uma coisa o apavorava. O ser inerte.
- É agora que verei a morte frente!
A frente dele estava o inevitavelmente. Encolhia-se na sombra da carnaúba.
- Ah, seja quem for, poder dizer o que quer! Não pode fugir.
O homem não podia esquecer o que viu. Na hora em que ele a viu o espantou foi assustador.
- O que viu?
- O que dizer!
A vida é má e mais má ainda é a morte. Mas quisera ele viver eternamente sem saber nunca o que a morte traz, que hora chega, que hora vais. O tempo cessava. Parado ele ficou no momento. O homem nunca se aproximou de tal horror. O pensamento envolvido, fechado dentro de si.
O vulto de branco tragado pelo crack, pela pedra branca, movia-se para um mundo inexplorado, o mundo sem volta, o mundo perdido, o mundo reservado aos mortos, aos mortos vivos.
 - O que está fazendo com sua vida?
- Eu só quero viver, moço! Me ajude!
- Esse é primeiro passo, pedir ajuda antes que seja tarde!

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