II reportagem ESPECIAL sobre as formas em prosa: CONTO
II -
O Conto
1. A PALAVRA "CONTO"
A palavra "conto" possui, em vernáculo, as
seguintes acepções:
1) número, cômputo, quantidade: "Um conto de
réis"; "Um sem conto
de soldados";
2) história, narrativa, historieta, fábula,
"caso"; embuste, engodo, mentira ("conto-do-vigário");
3) extremidade inferior da lança, ou do bastão: "E,
dando uma pancada penetrante, I
Co conto do bastão, no sólio puro"
(Os Lusíadas, I, 37). Em Portugal, além de vário emprego no sentido de
medida, o vocábulo ainda designa a "rede de pesca em forma de saco, cuja
boca é cosida a um círculo de ferro, que se amarra segundo um diâmetro a uma
vara". na terceira acepção, o vocábulo "conto" deriva do gr. kóntos, pelo
lat. contu, com análogo sentido. Para as duas primeiras acepções, tem-se
como forma originária o lato com putu ("cálculo", "conta").
Para a acepção literária, a de número 2, aventa-se ainda
outra hipótese, menos provável: a origem remontaria ao lato commentu ("invenção",
"ficção"). Admite-se também que o vocábulo "conto” seria
deverbal de contar, derivado do lato computare.
na Idade Média, significou
inicialmente" enumeração de objetos", passando com o tempo a
"resenha ou descrição de acontecimentos", "relato",
"relato de coisas verdadeiras", "enumeração de
acontecimentos", "narrativa".2 na Demanda do Santo Graal, é corriqueiro o uso da expressão" ora diz o conto
que...", para estabelecer nexo entre episódios ou "aventuras" da
novela. Por outro lado, as histórias e lendas conservadas no terceiro e no
quarto Livros de Linhagens são contos, embora de estrutura tosca e de o vocábulo
"conto" ainda não se empregar para nomeá-las.
No século XVI, a palavra assumiu sentido próprio,
contemporaneamente ao surgimento do primeiro contista do Idioma na acepção
moderna: Gonçalo Fernandes Trancoso, autor dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575), onde é sensível a influência de D. Juan Manuel,
Boccaccio, Bandello e outros. Pouco depois, delineia-se a mais antiga teoria do
conto em vernáculo, em Corte
na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo.
Daí por diante, apesar da incômoda presença do termo "novela", o
vocábulo" conto" não mais perderia sua denotação literária.
Mas no século XVIII, além de confundir-se com' 'novela"
e "romance", "em decorrência das ambigüidades devidas à
polissemia, o sentido do lexema 'conto', ainda quando se tratasse de conto
literário, guarda coloração pejorativa". Algo dessa coloração pode também
ser detectada no emprego, até meados do século XIX, do termo" conto"
na acepção medieval ou tradicional, como, por exemplo, na pena de Camilo
Castelo Branco: "De propósito as faço para te dar azo a inspirares fôlego
novo, visto que já te afadiga o conto. (...) – Novidade terceira! acudi eu,
quase suspeitoso da logração do conto".
"E vamos ao conto". E mesmo neste século pode ser
encontrado o vocábulo" conto" no sentido genérico de narrativa:
"Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos
nenhuns, mais isso não faz mal... "5 Ao longo do movimento romântico, empregava-se o vocábulo
"conto" no sentido de narrativa
popular, fantástica, inverossímil. Os autores preferiam
classificar de "novela'; ou "romance" suas narrativas, ou
recorrer a outros termos, como' 'lendas", "histórias",
"baladas", "tradições", "episódios", etc. Alexandre
Herculano enfeixou sob o título de Lendas
e Narrativas (1851) os contos inspirados na Idade
Média portuguesa, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, um dos pioneiros do conto
brasileiro, preferiu o rótulo de Romances
e Novelas (1852) para suas histórias, duas das
quais apresentam estrutura de conto.
Poe, um dos mestres do conto moderno,
publicou Tales of the Grotesque and
Arabesque (2 vols., 1840). Por outro lado, Alfred
de Musset intitulou Contes d'Espagne et d'ltalie (1830) sua estréia poética. A palavra ainda não se havia
firmado como designativo de um tipo definido de prosa de ficção. Nas últimas
décadas do século XIX, com o advento do Realismo, o conto literário entrou a
ser cultivado amplamente, iniciando um processo de requintamento formal que não
cessou até os nossos dias. E o vocábulo "conto" passou a ser genericamente
utilizado. Não obstante, Machado de Assis procurou evitá-lo na maioria de suas
coletâneas no gênero: Histórias da Meia-Noite (1873), Papéis
Avulsos (1882), Várias Histórias (1896),
Páginas Recolhidas (1899),
A palavra "conto" corresponde ao francês conte e
ao espanhol cuento. Em inglês, concorrem short
story, para as narrativas de caráter
literário, e tale, para os contos populares ou folclóricos, Em alemão, tem-se Novelle e
Erziihlung, no sentido de short
story, e Má'rchen,
de tale.
Em italiano: novelle e racconto.
2. HISTÓRICO DO CONTO
A história do conto mergulha num remoto passado, difícil de
precisar, suscitando, por isso, toda sorte de especulações. Tão antiga é sua
prática que nos autoriza imaginá-lo, em seu berço de origem, contemporâneo, ou
mesmo precursor, das primeiras manifestações literárias, ao menos as de caráter
narrativo.
Algumas teorias têm sido aventadas para explicar a gênese do conto,
como a indo-européia ou mitica, de autoria dos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm,
mais tarde retomada pelo lingüista Max Müller. Segundo ela, a origem do conto
remontaria aos mitos arianos, em circulação na pré-história da índia, tida como
o nascedouro do povo indo-europeu.
Ao ver de Theodor Benfey, em 1859, o mais
certo seria simplesmente considerar a índia, de onde os contos maravilhosos
teriam emigrado para o Ocidente já no século X d.e., ainda que em pequeno
número. Por seu turno, a teoria etnográfica, defendida por Andrew Lang, na
Inglaterra, propunha que o conto, além de ser uma forma anterior aos mitos,
nisso opondo-se a Max MüIler, teria brotado ao mesmo tempo em várias culturas,
geograficamente afastadas.
A teoria ritualista, apresentada por Paul Saintyves,
postulava que as personagens dos contos são "a lembrança de personagens
cerimoniais" de ritos populares caídos no esquecimento. Por fim, a teoria
marxista, devida a Vladimir Propp, autor das
Raízes Históricas dos Contos Maravilhosos (1946),
afirma que o conto maravilhoso é uma superestrutura, de modo que sua análise
permite reconhecer sinais dos modos de produção e dos regimes políticos (sistema
de clãs) que assistiram ao seu imemorial aparecimento.
Relativas, incompletas, insatisfatórias,
tais teorias vêm sendo substituídas por uma visão mais flexível, segundo a qual
"as raízes históricas dos contos são de fato uma abundância de radículas,
e (...) o universo do conto se espalha em uma multidão de tradições
heterogêneas".
Nesse longo lapso de tempo, que durou,
segundo uns, até o advento da imprensa, ou segundo outros, até o século XVII, o
conto se enquadraria no âmbito do que Ande um Jolles chamou de "formas simples",
em contraposição a "formas artísticas".
Enquanto essas se
caracterizam" como linguagem própria de um indivíduo bafejado pelo dom
excelente de poder alcançar, numa obra, definitivamente fechada, a coesão
suprema", nas outras "a linguagem permanece fluida, aberta, dotada de
mobilidade e de capacidade de renovação constante", em suma, "não são
apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem
mesmo pela 'escrita', talvez; (u.) não se tornam verdadeiramente obras de arte,
embora façam parte da arte; (.u) não constituem poemas, embora sejam
poesia", exprimem" gestos verbais elementares" e uma
"disposição mental" específica.; recebem "comumente os nomes de
Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorável,
Conto ou Chiste".
Como "forma simples", o conto entranharia no
folclore, aproximando-se da fábula e do apólogo, ou no universo das
"histórias de proveito e exemplo", do mundo de fadas, da carochinha,
e continuaria a ser cultivado mesmo depois do século XVI, pela
mão de La Fontaine, Irmãos Grimm, etc. E como' 'forma artística", o conto
seria o literário propriamente dito, por apresentar autor próprio, desligado da
tradição folclórica ou mítica para colher na atualidade os temas e as formas de
narrar.
Sublinhe-se que o conto, seja como "forma simples", seja como
"forma artística", gravita ao redor do mesmo núcleo estrutural. Alguns estudiosos acreditam que o aparecimento do conto
teria ocorrido alguns milhares de anos antes de Cristo. Apontam o conflito de Caim
e Abel como um exemplar no gênero. na Bíblia, ainda consideram como tal os
episódios de Salomé, Rute, Judite, Susana, do Rabi-Akiva, a parábola do filho
pródigo, a ressurreição de Lázaro, a história da Mãe Judia.
No antigo Egito, Os Dois
Irmãos e Setna e o Livro Mágico, de autor desconhecido, do século 14 a.C., mover-se-iam na
área do conto. Ainda estariam no caso o episódio entre Afrodite e Mercúrio, na Odisséia, os
amores de Orfeu e Eurídice, nas Metamorfoses,
de Ovídio, A Matrona de Éleso, de Petrônio, A
Casa Mal-Assombrada, de Plínio, o Moço, O Sonho, de
Apuleio, as fábulas de Esopo e Fedro. Do Oriente vêm exemplares dotados de
características que o tempo só acentuará ou desenvolverá: Mil e Uma Noites; Aladim e a Lâmpada Maravilhosa;
Simbad, o Marujo; Ali-Babá e os Quarenta Ladrões; Mercador de Bagdá, etc. da índia antiga restaram as seguintes obras, de autor
desconhecido: Panchatantra (ou "cinco
livros") e Jataka,
duas coleções de fábulas e histórias, Hitopadexa, um
manual de fábulas e histórias baseadas nas da Panchatantra.
Dos fabulistas e contistas hindus,
ficou a notícia de um deles, Somadeva, do século X a.C., autor de Oceano de Histórias.
Durante a Idade Média, o conto conhece uma época áurea, com
o aparecimento de Boccaccio, com Decameron,
Margarida de Navarra, com Heptâmeron, e
Chaucer, com Canterbury Tales. Nos séculos XVI e XVII, graças ao influxo de Boccaccio, o
conto é largamente cultivado, sobretudo na Itália. Matteo Bandello (Le Novelle), Celio
Malespini (Duecento Novelle), Francesco Doni (I
Marmz), entre outros, testificam um período de
florescimento do conto. na Espanha, a moda ganha adeptos, como Cervantes (Novelas
Ejemmplares), Quevedo (La
Hora de Todos) e outros. A França não fica à margem do
movimento: d'Ouville (Contes), PelTault (Contes),
Mme. d' Aulnoy (Contes de fées), La
Fontaine (Contes). Apesar de tudo, essas duas centúrias têm menos importância,
qualitativamente falando, que a Idade Média, em razão da artificiosidade
reinante.
Tal estado de coisas persiste no século XVIII, refletindo um
ambiente em que só a poesia e a prosa doutrinária puderam desenvolver-se. A
ficção em prosa manteve-se arredia. Apesar de tudo, na França surgem Piron,
Marmontel e Hamilton, liderados por um dos mestres do conto: Voltaire. Algumas
de suas histórias de cunho filosófico e satírico, como Zadig; Cândido, o Ingênuo; Micrômegas, A Princesa da
Babilônia, conferiram à narrativa breve a
vitalidade antes somente conseguida pelos escritores medievais.
Entrado o
século XIX, o conto vive uma época de esplendor. Além de se tornar "forma
artística", ao lado das demais até então consideradas, sobretudo as
poéticas, passa a ser vastamente cultivado: abandona o estágio de "forma
simples", paredes-meias com o folclore e o mito, para ingressar numa fase
em que se torna produto estritamente literário. Mais ainda: ganha estrutura e
andamento característicos, compatíveis com sua essência e seu desenvolvimento
histórico, e transforma-se em pedra de toque para não poucos ficcionistas.
A publicação de obras no gênero cresce consideravelmente na
segunda metade do século XIX: instala-se o reinado do conto, a div\idir a praça com o romance. E se até o
século XVIII tínhamos de procurar autores que merecessem referência, o panorama
muda agora: impõe-se escolher com rigor aqueles que possam figurar na galeria
de contistas que contribuem para evolução e o amadurecimento dessa fôrma
narrativa. ".
Na França, onde o conto se aclimata como em
parte alguma, grandes contistas avultam nessa quadra: Balzac, que o cultivou
excepcionalmente (Contes Drôlatiques), abre a lista, seguido de Flaubert (Trais
Contes) e Maupassant. Este emprestou-lhe uma fisionomia que passou a
ser aceita por gerações de imitadores. Mestre, iniciador de uma linhagem e de
um tipo de conto ("à Maupassant"), deixou obrasprimas, modelares,
reunidas em Boule de Suif, La
Maison, Tellier, Contes du Jour et de ia Nuit, etc. Além de Maupassant, outros
se dedicaram ao conto, embora sem o
mesmo brilho: Alphonse Daudet, Charles Nodier, Théophile Gautier, Stendhal,
Prosper Mérimée e tantos outros. Fora da Literatura Francesa, ainda se
destacaram no século XIX os seguintes contistas: Edgard ALan Poe (Tales ai the Grotesque and Arabesque, The Murders in the
Rue Morgue, etc.), criador das histórias de crimes e
de detetives; Nicolai Gogol, considerado, juntamente com Poe, o introdutor do
conto moderno; Anton Tchecov, tido como
o paradigma dos contistas russos,
conferiu notas de mistério e misticismo, próprios da alma eslava; escreveu
duzentas e quarenta e duas histórias; Hoffinarm, que se notabilizou com seus Contos
Fantásticos, muito lidos durante aquele século.
No espaço do vernáculo, nessa mesma época surgem contistas
de superior gabarito: em primeiro lugar, Machado de Assis, autor duma grande
quantidade de contos, alguns dos quais de fina estrutura e densidade psicológica,
como "Missa do Galo", "O Alienista",
"Uns Braços", "A Cartomante", etc. Além dele, merecem especial
relevo Fialho de Almeida e Eça de Queirós, seguidos de Alexandre Herculano,
Trindade Coelho, Coelho Neto,
Afonso Arinos, Simões Lopes Neto e
outros. No século XX, a voga do conto não esmoreceu; ao contrário,
mais do que em fins do século XIX, atinge em nossos dias o apogeu como fôrma
"erudita" ou literária.
Entretanto, apresentar as várias tendências e
fases atravessadas pelo conto moderno, incluindo as veleidades experimentalistas
que o têm impelido na direção da crônica ou do poema em prosa, - escapa dos
limites deste livro. Uns poucos nomes serão suficientes para dar uma idéia da
problemática diversidade: Anatole France, o. Henry, Virgínia Woolf, Katherine
Mansfield, Kafka, James Joyce, E. Hemingway, Máximo Górki, e tantos outros.
Em
Portugal e no Brasil, o panorama apresenta-se rico e variado, em parte como
reflexo da voga alcançada pela narrativa curta nos Estados Unidos e na Europa:
Monteiro Lobato, Am'bal Machado, Alcântara Machado, Mário de Andrade, Guimarães
Rosa, Dalton Trevisan, Osman Uns, João Alphonsus, Moacir Scliar, José Rodrigues
Miguéis, Maria Judite de Carvalho, rene Lisboa, Branquinho da Fonseca, José Régio,
Miguel Torga, Manuel da Fonseca e tantos outros. Entrevisto em sua longa
história, o conto é, provavelmente, a mais flexível das formas literárias.
Entretanto, em que pese às contínuas metamorfoses, não raro
espelhando mudanças de ordem cultural, ele se manteve estruturalmente uno,
essencialmente idêntico, seja como "forma simples", seja como
"forma artística". Doutro modo, nem se poderia falar em conto, se
estamos dispostos a atribuir ao vocábulo um sentido próprio e, tanto quanto
possível, consistente.
Eis porque não causa espécie a ninguém que se mencione o
conto na Antiguidade, na Idade Média e nos tempos modernos e contemporâneos: a
matriz do conto permaneceu constante, para além das transformações operadas,
uma vez que se processaram nas suas camadas epidérmicas. Por mais diferenças e
possam ser apontadas entre as histórias de Boccaccio e as de Jorge Luis Borges,
tratar-se-á sempre de narrativas com características estruturais comuns, que
permitem rotulá-las de contos. Se não, parece óbvio que a própria comparação
não teria razão de ser.
Assim, podemos concentrar-nos nessa estrutura que, se não é
imutável, nem por isso pode ser considerada sem fronteiras, ainda que instáveis. É evidente
que a determinação desses limites flutuantes pressupõe a abstração das mudanças
periféricas, visto não comprometer o núcleo da estrutura do conto. Localizá-los
não significa, pois, restrição da faculdade criadora nem da liberdade crítica:
nem os autores nem os críticos deverão sentir-se coagidos diante da teoria do
conto que se pode extrair do confronto entre as narrativas de várias épocas,
tendências, etc.
Não estamos ante um código estrito, implacável, a partir do qual
se julgassem todas as narrativas do gênero, mas da verificação de um estado de
coisas que vem durando o suficiente para autorizar um pouco mais do que simples
dúvidas, ou afirmações gratuitas, a seu respeito.
AGUARDE A 2 PARTE DA REPORTAGEM SOBRE O CONTO
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