III parte da
REPORTAGEM SOBRE
FORMAS EM PROSA.
CONCEITO
E ESTRUTURA
O conto é, do prisma de sua história e de sua essência, a
matriz da novela e do romance, mais isso não significa que deva poder,
necessariamente, transformar-se neles. Como a novela e o romance, é irreversível:
jamais deixa de ser conto a narrativa que como tal se engendra, e a ele não podem
ser reduzidos nenhum romance ou novela.
O conto "Boule de Suif", de Maupassant, de modo
algum se deixaria converter num romance ou novela: a história que aí se conta é
completa, fechada como um ovo. Por outro lado, o romance Irmãos Karamazov em
hipótese nenhuma poderia ser abreviado nas proporções materiais e intrínsecas
dum conto. Num caso e noutro, qualquer alteração modificaria radicalmente o
caráter da obra, despersonalizando-a e rebaixando-a ao nível da glosa ou do
pastich.
Daí decorre que a narrativa passível de ampliar-se ou
adaptar- se a esquema diverso daquele em que foi concebida, não pode ser
classificada de conto, ainda que o seu autor a considere, impropriamente, como
tal. Para ilustrar este caso, podemos recorrer a Aluísio Azevedo.
No seu livro Demônios, há umas
poucas peças que funcionam a rigor como exercício de cenas que o escritor
acabou transferindo para seus romances: assim, "Pelo Caminho", onde
focaliza uma jovem noiva tuberculosa que encontra seu noivo em plena manhã,
vindo de grossa pândega, vai constituir o capítulo XXXIII, intitulado
"Pela Estrada da Tijuca", da Condessa
Vésper.
Por outro lado, "Inveja" é a síntese da Mortalha de Alzira: basta o ter podido transmutar-se no romance para nos dizer
de sua condição de mero exercício. O caso inverso é representado pelo conto Civilização,
que Eça converteu
na Cidade e as Serras. Como
se tratasse dum conto – e portanto
irreversível - ao
pretender desdobrá-lo num romance, Eça escreveu uma
obra que continua a ser essencialmente um conto, embora os vários enxertos e a
lentidão narrativa sugiram o contrário. Um confronto entre os dois textos, que
desse conta de seu caráter específico, reclamaria um longo estudo. Não sendo
possível fazê-lo no espaço deste livro, contente nos com algumas indicações.
"Civilização" gravita ao redor de uma idéia
central: Jacinto, supercivilizado e rico, precocemente envelhecido, bocejava de
tédio infinito em seu palácio seiscentista, até que um dia resolve passar algum
tempo em sua quinta de Torges, e lá, em meio à natureza, recupera seu gosto de
viver.
Ecoando a tese de Rousseau e os romances campesinos de Júlio Dinis, o
conto se distende entre as páginas 79 e 118 da edição compulsada (Contos, Porto,
Lello, 1946). Escassas 40 páginas, que poderiam reduzir-se, com proveito, à metade,
senão menos, se o narrador se ativesse ao cerne da situação e não se desviasse
por atalhos e minúcias redundantes.
Aceitemos, porém, o texto como se apresenta e vejamos como
se comporta em face da Cidade
e as
Serras, que tem, na edição de 1944, da mesma
casa editora, 369 páginas. Para desdobrar quatro dezenas de páginas, já de si
abundantes, em quase quatro centenas, somente fazendo interpolações, agregando
observações, dando asas à fantasia, demorando-se nas passagens doutrinais,
enfim, encompridando o texto artificial e desnecessariamente.
Alguns exemplos
bastarão para dar uma ideia do descompasso aritmético, que não altera, na sua
estrutura, o conto original: eliminem-se os excessos e logo se perceberá que o
núcleo dramático de "Civilização" é o mesmo da Cidade e as Serras.
Dois momentos nítidos se distinguem numa e noutra narrativa,
demarcados pela ida do fidalgo Jacinto a Torges, em "Civilização", e
a Tormes, na Cidade e as Serras. Enquanto naquele a viagem ocorre à página 93, na Cidade e as Serras dá-se
à página 164. Como Eça multiplicou 14 páginas em 164? Simplesmente inflando o
texto: em "Civilização", o narrador surpreende Jacinto aos 30 anos,
portanto à beira de viver seu momento
de transformação ou momento
de crise, como de hábito no universo do conto13;
na Cidade e as Serras, não só o imagina nascido em Paris (o que evidencia a
artificiosidade um tanto hiperbólica que
preside o novo traçado narrativo, como
se detém no avô, no pai e na infância de Jacinto).
É que, nas palavras de um romancista atento à especificidade
do seu ofício, "uma personagem de romance jamais pode ser confinada nos limites
estreitos do conto, assim como a personagem do conto jamais pode ser alargada
até as dimensões do romance sem qualquer alteração em sua natureza".
E daí para a frente, toca de esmiuçar tudo, a começar pela ideia
que esse "Príncipe da Grã-Ventura" concebera, seguida de estirados
diálogos em torno de questões intelectuais e mundanas, neutras do ponto de vista
dramático; enfim, a exaustiva pormenorização do dia-a-dia de Jacinto e Zé
Fernandes (agora sabemos o do narrador e amigo do herói) se espicha até um
pouco menos da metade do volume.
Se tais ingredientes, certo que adicionados com brilho e o
inimitável estilo queirosiano, encerrassem carga dramática, constituindo
episódios ou capítulos de um complexo processo de interação social, estaríamos ante
algo diferente do conto. Mas não é o que sucede: as interpolações e escusos não
constituem polos dramáticos,mas enchimento verbal que apenas adia o instante
dramaticamente significativo, quando o herói abandona o palácio, - situado na província portuguesa, no
conto, e no 202 de Champs Elysées, em Paris, na Cidade e as Serras - pelo campo. Removidas as excrescências, resta um invariante, o plot que
sustenta os dois textos:
1) um homem abastado, superiormente culto, enfastia-se de
tudo, em meio aos produtos requintados da civilização do século XIX, iguarias
finas, aparelhos modernos de comunicação e de simplificação da vida doméstica,
e uma riquíssima biblioteca;
2) no auge do tédio, dá-se a fuga para a serra, de que
resulta a modificação do herói em homem simples, mas feliz;
3) o casamento e
tudo o mais que se segue à sua transformação carece de vigor dramático: são consequências
naturais da metamorfose operada no contato com o remanso bucólico; aí, sim, o
fulcro de "Civilização" e A
Cidade e as Serras. E mesmo o nascimento dos filhos de
Jacinto e a instalação de conforto civilizado em Tormes, na Cidade e as Serras, apenas materializam, sem acrescentar novidade, a mudança
transcorrida na alma e no temperamento do protagonista.
Atingira a individuação, diria Jung, após a qual não resta
senão alargar os domínios do "eu" e da existência. E tal mudança é
que constitui o alicerce das duas narrativas: ambas são, do ângulo da estrutura
mínima e fundamental, contos, não importa que A
Cidade e as Serras se espraie por centenas de páginas.
As
Unidades do Conto
o conto é, do ângulo dramático, unívoco,
univalente. Abramos parênteses para esclarecer o sentido dos vocábulos"
drama", "dramático" e cognatos. Etimologicamente preso à
linguagem teatral, "drama" significava "ação".
E com o
tempo passou a designar toda peça destinada à representação. na época
romântica, dado o princípio da fusão de gêneros, entendia-se por drama o misto
de tragédia e comédia.
Transferido para a prosa de ficção, o termo
"drama" entrou a significar "conflito", "atrito".
Nesse caso, "ação" e "conflito" se tornaram equivalentes,
uma vez que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação, ou por meio
dela se manifesta; em suma, ambos se implicam mutuamente.
O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente:
constitui uma unidade dramática, uma célula dramática,
visto gravitar ao redor de um só
conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada
esta como a seqüência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que
participam. A ação pode ser externa, quando as personagens se deslocam no
espaço e no tempo, e interna, quando o conflito se localiza em sua
mente.
Para bem compreender a unidade dramática que identifica o
conto, é preciso levar em conta que os seus ingredientes convergem para o mesmo
ponto. A existência de uma única ação, ou conflito, ou ainda de uma única
"história" ou "enredo", está intimamente relacionada com a
concentração de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as
divagações, os excessos.
Ao contrário: cada palavra ou frase há de ter sua razão
de ser na economia global a narrativa, a ponto de, em tese, não se poder
substituí-la ou alterá-la sem afetar o conjunto. Para tanto, os ingredientes
narrativos galvanizam-se numa única direção, ou seja, em torno de um único
drama, ou ação.
Evidentemente, é a observação de incontáveis narrativas no
gênero que induz a pensar que a uni valência dramática do conto significa haver
um único objeto comandando a escrita e os componentes narrativos. Tomemos um exemplo:
"Missa do Galo", de Páginas
Recolhidas (1899), de Machado de Assis, composto
por um único episódio, o diálogo repassado de sensualidade, entre o narrador,
Nogueira, então com dezessete anos, e sua hospedeira, D. Conceição, uma
balzaquiana, casada, com 30 anos.
Enquanto dormiam a sogra e as duas escravas, e como o
marido, o escrivão Meneses, saísse de mansinho para uma de suas noites de
teatro, eufemismo que lhe encobria os "amores com uma senhora, separada do
marido, e dormia fora de casa uma vez por semana", Conceição esgueira-se
do leito conjugal e vai para a sala, onde Nogueira lia Os Três Mosqueteiros, fazendo
hora para ir ver "a missa do Galo na Corte".
Sozinhos naquele serão
natalino, que ficaria indelevelmente gravado na lembrança do narrador, arma-se uma
situação dramática única, e por certo a mais importante, na trajetória
existencial do perplexo adolescente.
A narrativa desse encontro memorável é um conto por encerrar
unidade dramática, com princípio, meio e fim. Corresponde ao ápice na vida
provinciana do Nogueira. Como o sabemos? Pela simples verificação de que o jovem,
além de não protagonizar outra história qualquer, passaria seus dias na
rememoração obsessiva daquele episódio marcante.
Recordá-lo para sempre, como
Sísifo, eis o seu suplício e sua delícia. Mas naquela noite ele vivera seu momento privilegiado, único instante em que sua vida escapou da cinzentice do
cotidiano para a luz efêmera da ribalta.
Experimentara os quinze momentos de glória a que todo mortal
tem direito. Pouco importa, a ele e a nós, leitores, tudo quanto precedeu a
hora de subentendidos e meias palavras escaldantes de promessas, e tudo quanto
se lhe seguiu: o passado e o futuro carecem de significação dramática, não
possuem conflito, ação, digna de um conto. Quando muito, o contista
apresentaria um sumário do passado, ou do futuro, que possa lançar alguma luz
sobre a situação em foco: é a chamada síntese dramática.
A esse expediente recorre o narrador no epílogo da
narrativa; "Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de
Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no
Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com
o escrevente juramentado do marido".
Do ponto de vista dramático, porém,
tudo se encerrara naquela noite de frustre sedução amorosa. É irrelevante o que
possa acontecer depois ao nosso herói, seja porque anunciado nos pormenores do
conto, seja porque ele esgotara no conflito central todas as suas
potencialidades e reservas emocionais. Regra geral, assim se passam as coisas
no universo do conto.
Se não, podemos desconfiar que se trata, mais propriamente,
de um trecho ou embrião de romance ou novela. O conto constitui o recorte da
fração decisiva e a mais importante, do prisma dramático, de uma continuidade
vital em que o passado e o futuro guardam significado inferior ou nulo.
Os
protagonistas abandonam o anonimato no momento
privilegiado, de modo que o tempo anterior funciona,
quando muito, como germe ou preparativo daquele instante em que o destino joga
uma grande cartada.
O tempo subsequente se tinge de equivalente coloração: o
futuro é previsível ou fácil de vaticinar, seja porque definido pela morte ou
solução correspondente, seja porque os atos a praticar e os gestos a descrever
foram determinados por aquele hiato dramático, seja porque os figurantes,
depois disso, regressaram à primitiva obscuridade, não apresentando suas vidas
nada digno de registro. Elimina-se, assim, a hipótese de continuarem no palco
dos acontecimentos.
De onde o conto ser, a essa luz, obra fechada,
dramaticamente circunscrita. Quando o ficcionista resolve ultrapassar essa
barreira "natural", prolongando o convívio com os seres que criou,
duas saídas se lhe oferecem: a
primeira pode ser ilustrada pelo caso de Dalton Trevisan e Guerra Conjugal (1975),
vGllume de contos que giram ao redor de duas personagens,
João e- Maria.
Que é que se observa nessa obra,engenhosamente arquitetada para
vencer a referida limitação? Se a primeira
narrativa é vivida por João e Maria, a segunda é-o por João! e Maria!, a
terceira por João e Maria, e assim consecutivamente:
João e Maria do segundo
conto em diante não são os mesmos do primeiro, mas outras
personagens batizadas com idêntico antropônimo, envolvidas em situações específicas, precisamente
como na vida, em que os Joões e Marias
de todo o mundo, apesar da identidade do
apelativo, protagonizam sempre histórias particulares.
A segunda
variação técnica se exemplifica em Bandeira
Preta (1956), de Branquinho da Fonseca:
transitando de uma
narrativa para outra e vivendo a mesma situação dramática ao
longo delas, as personagens (pedro,
Chinca
e outros) induzem o leitor a crer que o ficcionista estaria
projetando, inconscientemente, um romance ou uma novela, e não uma série de histórias curtas.
Se a primeira solução vale como exercício superior de um contista nato a repudiar o
conforto das estereotipias, a segunda compromete, pela monotonia dramática e a inconsistência estrutural, o talento
dum ficcionista de primeira água.
A unidade de ação condiciona as demais características do conto. Começando pela noção de espaço, verificamos que o lugar onde as personagens
circulam, é sempre de âmbito restrito. No geral,
uma rua, uma casa,
e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se
organize.
Raramente
os protagonistas se movimentam para outros lugares. E quando isso ocorre,
de duas uma: ou a narrativa tenta abandonar sua condição
de conto, ou o deslocamento advém de uma necessidade imposta
pelo conflito que lhe serve de base, constituindo a
preparação da cena, busca de pormenores enriquecedores
da ação, etc.
Nessa alternativa, o espaço ocupado pelas personagens antes do lugar onde
se desenrola a cena
principal é dramaticamente neutro ou vazio, espaço-sem-drama, ao
passo que o outro é espaço-com
drama.
Em Civilização ", o espaço dramático situa-se em
Torges; a estada no palácio é mero preparativo para
a viagem ao local onde o herói, vivendo seu momento
privilegiado, sofreria a decisiva mudança de caráter.
Em "Questões de Família", de Dalton Trevisan,
adiante transcrito, observa-se que a casa do protagonista é
secundária do prisma dramático, enquanto a do sogro se
apresenta tão cheia de conflitos latentes que acaba
sendo palco da morte do herói.
Em "Missa do Galo", tudo se passa na "sala da
frente" daquela" casa assobradada da Rua do Senado". Ali
o drama começa e termina. Seus antecedentes, além de
secundários, em poucas palavras se narram: "vim de
Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar
preparatórios". Mesmo que o narrador se detivesse
a relatar-nos sua vida pregressa, teria de fazê-lo como
síntese dramática.
Com isso, a unidade de espaço continuaria a ser observada. Daí o dinamismo do lugar físico
em que a ação decorre: o contista, como se manejasse uma câmara cinematográfica, apenas se demora no
cenário diretamente relacionado com o drama. Verse-á, mais adiante, quando se tratar da descrição, de que
modo funciona esse mecanismo de enfoque geográfico.
A unidade de ação corresponde, assim, a
unidade de espaço, e esta decorre da circunstância de apenas
determinado ambiente encerrar importância dramática. da
mesma forma que uma única ação, por veicular conflito, sustenta a narrativa, um único espaço serve-lhe de
teatro. Pode-se dizer, consequentemente, que no conto se processa a determinação
do espaço (e também do tempo como se
verá), na medida em que os demais lugares (e momentos) são vazios de dramaticidade.
Do contrário, pela criação de vários pólos dramáticos,
haveria desequilíbrio interno, e o conto perderia o seu
caráter próprio para tornar-se esboço da novela ou
romance. Por outras palavras, da mesma forma que há
espaço-sem-drama e espaço-com-drama, no conto distinguem-se acontecimentos-sem-drama
e acontecimentos-com-drama: estes é que constituem a ação
central da narrativa, enquanto os
outros funcionam
como satélites.
A noção de espaço segue-se imediatamente
a de tempo. E
aqui também se observa unidade. Com efeito,
os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em curto lapso de tempo: já
que não interessam o passado e o futuro, o conflito se passa em horas, ou dias.
Se levam anos, de duas uma:
1) ou trata-se dum embrião de romance ou novela,
2) ou o longo tempo referido aparece na forma de síntese
dramática, que envolve, habitualmente, o passado da personagem. Em "Missa
do Galo", os antecedentes temporais estão postos de parte: apenas sabemos
a idade dos protagonistas; sabemos que tudo ocorre mais ou menos entre vinte e
três horas e meia-noite: "ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por
elas, um acaso".
Tampouco interessam os acontecimentos posteriores ao
episódio: umas poucas referências, que vão sublinhadas, não alteram a unidade
de tempo do conto, mesmo porque vagas, secundárias e destituídas de força
dramática: "Pelo Ano- Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o
escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem
a visitei nem a encontrei. Ouvi mais
tarde que casara com o escrevente juramentado
do marido".
O conto, voltado que está para o centro nevrálgico da
situação dramática, abstrai tudo quanto, na esfera do tempo, encerra
importância menor. Assim se explica que lhe seja estranha, ou escassamente
compatível, a "duração" bergsoniana, ou a complexa intersecção de
planos temporais, engendrada pela memória associativa, ou por outro expediente
análogo. De onde a "objetividade" do conto: desprezando os desvios e
atalhos narrativos, concentra-se no âmago da questão em foco.
Tal "objetividade", presente ainda em outros
aspectos, mais adiante examinados, salta aos olhos com as três unidades, de
ação, tempo e lugar. Assinale-se que fazem lembrar o teatro, notadamente o
clássico, numa relação que será circunstanciada num tópico específico.
Às
unidades referidas acrescente-se a de tom:
os componentes da narrativa obedecem a
uma estruturação harmoniosa, com o mesmo e único escopo, o de provocar no
leitor uma só impressão, seja de pavor, piedade, ódio, simpatia, ternura,
indiferença, etc., seja o seu contrário.
Corresponde à "unidade de efeito ou de impressão"
, proposta por Poe na famosa resenha a Twice-Told
Tales, de Nathaniel Hawthorne, publicada em 1842,
na Graham 's Magazine. Não obstante posta em dúvida por vários críticos, empenhados
em ressaltar-lhe a limitação, uma vez que não recobre todos os contos, 18
(a unidade de tom) continua indispensável para a melhor
compreensão da estrutura do conto.
É que, como apontamos nas preliminares ao estudo das fôrmas em
prosa, não se pode esperar que a teoria do conto englobe todos os espécimes no
gênero. Raciocinar com as exceções não invalida a teoria, salvo se o número
delas prevalecer sobre o das narrativas que serviram para que a teoria se
erguesse. Mas, nesse caso, deixariam de ser exceções... Ainda que se trate de uma
obviedade lógica, críticos há que não atentam para ela.
Compreende-se com mais segurança e nitidez que no conto tudo
há de convergir para a impressão única, quando nos lembramos de que ele opera
com a ação e não com os caracteres.
Estes, entendidos como personagens
redondas no grau máximo de complexidade (ver o tópico referente às personagens,
no capítulo destinado ao romance), situam-se fora da narrativa curta, embora
seus protagonistas usuais não se confundam com meros bonecos de 'mola nas mãos
do ficcionista.
Tendo em vista a unidade de impressão, ou respeitando-a
espontaneamente, à medida que urde sua trama, o narrador dispõe de um espaço e
de um tempo circunscritos para movimentar-se. Sua meta não consiste em criar
seres vivos à nossa imagem e semelhança, complexos e quiçá múltiplos, como
pretende o romance, mas situações de conflito em que todos os leitores se
espelhem. Somos todos eventuais personagens de conto, poucos de nós
protagonizariam romances.
O esforço inventivo do contista se dirige para a formulação
de um drama em torno de um sentimento, único e forte, a ponto de gerar uma
impressão equivalente no leitor. A unidade de tom se evidencia pela
"tensão interna da trama narrativa" , ou seja, pela funcionalidade
de cada palavra no arranjo textual, de modo que nenhuma se possa retirar sem
comprometer a obra em sua totalidade, ou acrescentar sem trazer-lhe
desequilíbrio à estrutura. Toda excrescência ou amplificação torna-se, assim,
indesejável.
Entretanto, impõe-se distinguir:
1) a digressão que provém dum alargamento narrativo ou do
intuito de, fixando os olhos em ingredientes acessórios, distrair o leitor e
adiar o clímax dramático;
2) a digressão resultante do empenho estilístico do
narrador, ao dilatar o texto pelo acréscimo de notações plásticas, descritivas,
a fim de propiciar ao leitor a contemplação de um momento de beleza verbal, não
raro vibrante de estética poética.
Por paradoxal que se afigure, o primeiro tipo não se
justifica, pois escancara uma porta dramática que o narrador não pode invadir,
sob pena de principiar uma história paralela e, com isso, dar origem a uma
estrutura imprópria do conto, ou mesmo anômala, posto que obediente a algumas
de suas matrizes básicas. Somente o segundo tipo, por não derivar para situações
tangenciais, tem razão de ser no universo do conto.
Um exemplo da primeira alternativa pode ser colhido no conto
"O Filho", de Fialho de Almeida, história duma pobre camponesa que
vai à estação de trem esperar o filho que regressaria do Brasil. Logo após introduzir-nos
a protagonista, o narrador se entretém por um instante na descrição de outras
pessoas que também aguardam:
Na
sala de espera da terceira classe, entre bagagens e cobertores de lã, dormem
aos montes, rabuzanos que vão trabalhar para o Alentejo, os varapaus de castanho atravessados,
os tamancos ao lad~, os pés descalços, e um cheiro a lobo que se evola das suas
saragoças montanhesas. Nostalgicamente, alguns tasquinham um pão de milho
horrível, com sardinhas assadas entre as pedras.
E a descrição segue nesse diapasão por mais um longo
parágrafo: a única justificativa para a digressão reside no fato de aqueles figurantes servirem de pano de
fundo, paisagem social, no qual se estabelece o drama da campônia. Mas trata-se dum pano de fundo inoperante
do ângulo dramático, uma vez que não colabora para adensar o clima de tragédia que se avizinha.
Ao contrário, faz supor outros conflitos, que o
narrador, obviamente, não pode revolver sem ameaçar o
equilíbrio do conto. Na verdade, permite admitir que,
por momentos, o narrador se alheia do caso da velha,
delineado com realismo, como pedia o decálogo em moda no tempo, para se entregar, subjetivamente, à pintura
dum quadro melancólico:
E
os mais novos, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, todos alegres daquela
primeira migração às sementeiras de lá baixo, esses não param examinando tudo
pelos cantos, espantados, deslumbrados, fulvos e bonitos como bezerrinhos de
mama; e ei-los estacam diante dos relógios, dos aparelhos do telégrafo, a sala
do restaurante cheia de flores, os chalés de hospedagem, e os pequenos jardins
dos empregados da estação... Dois ou três arranham nas bandurras fados
chorosos, melodias locais duma tristeza penetrante, em cujos balanços, gemidos,
estribilhos, se acorda o murmúrio dolente das azenhas, vozes da serra, risotas
da romagem, balidos do pulvilhal que entra no ovil, todas as indefinidas
virgindades dessa sagrada terra da Beira, núcleo de força, e ainda agora a mais
impoluta ara da família portuguesa.
o excurso provoca quebra da tensão
narrativa, determinando um recomeço que pode ser prejudicial
conforme seja a freqüência e volume das inserções: o conto
extenso corre sempre o risco, mais do que o breve, de alongar
desnecessariamente o âmbito da ação. Por outro lado, qualquer conto malogra
quando destituído de tensão: formulá-la e sustentá-la, num andamento senóide,
constitui o desafio enfrentado por todo contista.
Ora, o narrador não esconde que conhece a situação aflitiva
daqueles migrantes em busca de trabalho, suscetível, por isso, de gerar outras
narrativas, diferentes da que nos' apresenta em "O Filho". A
digressão ainda pode funcionar como autêntica paisagem social quando
dramaticamente neutra ou inacessível ao olhar do narrador, como no seguinte
passo, do conto "José Matias", de Eça de Queirós:
o
sujeito de óculos de ouro, dentro do coupé?..
Não conheço, meu amigo. Talvez um
parente rico, desses que aparecem nos enterros, com o parentesco corretamente
coberto de fumo, quando o defunto já não importuna, nem compromete. O homem
obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves "Capão", que tem
um jornal onde desgraçadamente a filosofia não abunda, e que se chama a
"Piada". Que relação o prendia ao Matias?.. Não sei. Talvez se
embebedassem nas mesmas tascas; talvez o José Matias ultimamente colaborasse na
"Piada"; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas
tão sórdidas, se abrigue uma alma compassiva.
em que o desconhecimento do narrador, ou o seu conhecimento
relativo mas fechado, sela em definitivo o caso daqueles figurantes ocasionais, convocados, como
"extras" cinematográficos, para uma "tomada" em que
a sua presença se confundisse com o próprio cenário.
A segunda alternativa pode ser ilustrada com o seguinte
parágrafo, do conto' 'Os Olhos de Cada Um", de
Branquinho da Fonseca:
Ao
sair desembrulhou a carta e começou a ler enquanto caminhava pelo corredor
abaixo. E parou. E voltou para trás. Foi para o quarto de dormir, fechou a
porta à chave, e começou, serenamente, a ler tudo desde o princípio. Pela
janela entrava uma noite muito calma, com estrelas e luar. Ouviam-se as rãs a
coaxar e a água a cair no tanque do jardim. Pedro, imóvel, sentado diante
daqueles papéis amarelos, com o olhar parado, lia.23 onde o trecho desde "Pela janela" até
"jardim" constitui pausa para contemplar paisagem, indispensável como
sugestão de atmosfera, adiamento do desenlace, e admissivel
porque neutro do ponto de vista dramático (mera descrição poética de ambiente).
O conto monta-se, portanto, à volta de uma só idéia ou
imagem da vida, desprezando os acessórios e, via de regra, considerando as
personagens apenas como instrumentos da ação. Uma narrativa bem resolvida obedece
espontaneamente a esse requisito fundamental: quando não, resulta em malogro
enquanto conto, embora contenha imanente um romance.
Serve de modelo, mais uma
vez, Machado de Assis com o seu "Missa do Galo": terminada a \ narrativa, fica-nos a impressão (que varia ".em grau
conforme o leitor) de que a todos nós acontece, pelo menos uma vez na vida, um diálogo de subentendidos, onde se
jogou uma partida decisiva em nossos destinos, e de que só tomamos consciência
anos depois.
Todas as demais impressões possíveis ausentam-se em favor
daquela que o contista escolheu para transmitir: e sabemos, depois de lido o
conto, que a escolha foi a melhor, graças à impressão experimentada.
Em
síntese: o núcleo do conto é representado por uma situação dramaticamente
carregada; tudo o mais à volta funciona como satélite, elemento de contraste,
sem força dramática. Por outras palavras, o conto se organiza precisamente como
uma célula, com o núcleo e o tecido ao redor; o núcleo possui densidade dramática,
enquanto a massa circundante existe em função dele, para que sua energia se
expanda e sua tarefa se cumpra.
O êxito ou o insucesso do conto se evidencia na articulação
ou desarticulação entre o núcleo dramático e o seu envoltório não-dramático. Um
e outro podem formar-se dos mesmos materiais narrativos (personagens, ação,
espaço, tempo, etc.), mas os componentes do núcleo ostentam sentido dramático,
ou seja, empenham-se num conflito, ao passo que os ingredientes periféricos não
exibem conotações dramáticas.
Assim sendo, o que importa num conto é aquela(s)
personagem(ns) em conflito, não a(s) dependente(s); o espaço onde o drama se
desenrola, não os lugares por onde transita a personagem, e assim por diante.
Embora os exemplos analisados mais adiante procurem dar conta dessa faceta da
teoria do conto, vejamos desde já um caso ilustrativo.
Em "O Búfalo", de Laços de Família (1960),
Clarice Lispector imagina a protagonista em visita ao zoológico. Durante o
trajeto, a sucessão de bichos é interrompida por lampejos de monólogo interior,
que atinge o ápice no "momento privilegiado", ou "acontecimento
significativo", diante do búfalo: o eixo central do conto se situa no
"diálogo" silencioso entre a personagem e o animal.
As observações anteriores
e posteriores estruturam-se como cenário vazio de dramaticidade que, por
oposição, ressalta o encontro fulminante, indicativo de uma profunda
modificação interior, entre o olhar humano em desespero e o da fera em sua
bruta imobilidade.
Personagens
Em decorrência das características apontadas, poucas são as
personagens que intervêm no conto: as unidades de ação, tempo, lugar e tom implicam
a existência de uma reduzida população no palco dos acontecimentos. Um mestre
do conto moderno, preocupado não só com emprestar novidades técnicas à velha estrutura
narrativa, mas também com seus fundamentos teóricos, já o dizia com estas
palavras categóricas: "não é necessário retratar várias personagens.
O centro de gravidade deve repousar em duas pessoas: ele e ela...',25
Em "Missa do Galo", contracenam duas personagens, e as restantes (D.
Inácia e Meneses, o marido de D. Conceição), além de referidas de passagem, não
participam do diálogo que nucleia o conto: funcionam como pano de fundo,
paisagem humana ou social. "Extras" que são, podem somar-se à
vontade, visto sua condição predeterminar o âmbito estreito em que se
movimentam. De onde não ser possível o conto em torno de uma única personagem;
ainda que uma só avulte como protagonista, outra participará, direta ou
indiretamente, na formulação do conflito que sustenta a história.
Nesse aspecto, "Um Ladrão", de Insônia (1947),
de Graciliano Ramos, constitui narrativa exemplar: um gatuno penetra numa casa
em plena calada da noite, para cumprir seu malévolo desígnio. Inexperiente, aterroriza-se
e tarda a chegar ao quarto de dormir, onde se encontram as jóias que pretende
surrupiar.
Após longa indecisão, acompanhada dum diálogo mental com a moça dos
olhos verdes, atinge o ponto desejado. Mas estaca, perplexo, ante a bela jovem
que ressona placidamente. Que fazer? Tomar as jóias? Ceder ao impulso amoroso?
Afinal, dispõe-se a beijá-la. "Uma loucura, a maior das loucuras: baixou-se
e espremeu um beijo na boca da moça." Dado o alarme, é preso. Excetuando a
namorada que ficou na lembrança, e com quem fala mentalmente, o protagonista
age sozinho até o desenlace. Aqui, emprega-se um expediente narrativo típico do
conto, ao menos numa de suas vertentes - o epílogo enigmático -, que será objeto de análise em tópico próprio.
Note-se que Graciliano Ramos concentra nele o auge do
enredo, e é nesse momento que intervém a heroína: a equação dramática se monta
e se completa no minuto em que, irrefletidamente, o larápio rouba o beijo. Dois
protagonistas, em suma.
Mesmo nos casos em que o autor utiliza o foco narrativo
de primeira pessoa, ou de terceira pessoa aparente (ver, mais adiante, o
comentário referente ao "ponto de vista"), está presente um
interlocutor, quando pouco oculto ou subjacente.
Do contrário, não haveria conflito, que pressupõe uma tensão
dialética entre opostos. Alguns dos contos de Clarice Lispector ilustram à
perfeição essa contingência, ao surpreender a personagem nos instantes em que,
mergulhando na introspecção, trava um diálogo com um .. outro" , seu oponente
ou interlocutor. Ainda em conseqüência das unidades que governam a estrutura do
conto, as personagens são estáticas ou planas, segundo a conhecida
classificação proposta por E. M. Forster (Aspects
of the Novel, 1927), discriminada mais adiante, no
capítulo do romance.
O autor, focalizando-as no lance mais dramático de sua existência,
imobiliza-as no tempo, no espaço e nos traços de personalidade. Em vez de
crescerem no decurso da narrativa, como as personagens de romance, oferecem uma
faceta de seu caráter, no geral a mais relevante, como que à luz do
microscópio: o conto lembra uma tela em que se representasse o apogeu de uma
situação dramática. O convívio com as personagens dum conto dura o tempo da
narrativa: terminada esta, o contato se desfaz, visto que a "vida"
dos protagonistas está encerrada no episódio que constituía a matriz do conto.
O intercâmbio rompe-se no desfecho pelo fato da existência
das personagens não apresentar mais espaço à imaginação do autor e do leitor:
com o epílogo, suspende-se o trânsito da fantasia, ou da contemplação do instante
dramático que o conto focaliza. De onde o leitor, além de guardar na memória
uma impressão que pouco a pouco se dilui, esquecer as mais das vezes o nome dos
heróis.
"Uns
Braços" pode ser obra-prima em matéria de conto, mas quem se recorda dos
protagonistas e respectivos apelativos? Ao contrário do autor de romance, o
autor de contos, decerto cônscio da relativa importância dos nomes das
personagens, chega mesmo a silenciá-los. É o caso, por exemplo, de "Um
Ladrão", cujo protagonista é anônimo, bem como as figuras que lhe povoam a
memória, salvo "o amigo que o iniciara", mas referido por meio de um
cognome, Gaúcho, equivalente a não ter nome.
AGUARDE A PARTE SOBRE A ESTRUTURA DO CONTO.
Nenhum comentário:
Postar um comentário