quinta-feira, 6 de setembro de 2012


III parte da 

REPORTAGEM SOBRE FORMAS EM PROSA.

CONCEITO E ESTRUTURA

O conto é, do prisma de sua história e de sua essência, a matriz da novela e do romance, mais isso não significa que deva poder, necessariamente, transformar-se neles. Como a novela e o romance, é irreversível: jamais deixa de ser conto a narrativa que como tal se engendra, e a ele não podem ser reduzidos nenhum romance ou novela.

O conto "Boule de Suif", de Maupassant, de modo algum se deixaria converter num romance ou novela: a história que aí se conta é completa, fechada como um ovo. Por outro lado, o romance Irmãos Karamazov em hipótese nenhuma poderia ser abreviado nas proporções materiais e intrínsecas dum conto. Num caso e noutro, qualquer alteração modificaria radicalmente o caráter da obra, despersonalizando-a e rebaixando-a ao nível da glosa ou do pastich.

Daí decorre que a narrativa passível de ampliar-se ou adaptar- se a esquema diverso daquele em que foi concebida, não pode ser classificada de conto, ainda que o seu autor a considere, impropriamente, como tal. Para ilustrar este caso, podemos recorrer a Aluísio Azevedo. 

No seu livro Demônios, há umas poucas peças que funcionam a rigor como exercício de cenas que o escritor acabou transferindo para seus romances: assim, "Pelo Caminho", onde focaliza uma jovem noiva tuberculosa que encontra seu noivo em plena manhã, vindo de grossa pândega, vai constituir o capítulo XXXIII, intitulado "Pela Estrada da Tijuca", da Condessa Vésper.

Por outro lado, "Inveja" é a síntese da Mortalha de Alzira: basta o ter podido transmutar-se no romance para nos dizer de sua condição de mero exercício. O caso inverso é representado pelo conto Civilização, que Eça converteu na Cidade e as Serras. Como se tratasse dum conto e portanto irreversível - ao pretender desdobrá-lo num romance, Eça escreveu uma obra que continua a ser essencialmente um conto, embora os vários enxertos e a lentidão narrativa sugiram o contrário. Um confronto entre os dois textos, que desse conta de seu caráter específico, reclamaria um longo estudo. Não sendo possível fazê-lo no espaço deste livro, contente nos com algumas indicações.

"Civilização" gravita ao redor de uma idéia central: Jacinto, supercivilizado e rico, precocemente envelhecido, bocejava de tédio infinito em seu palácio seiscentista, até que um dia resolve passar algum tempo em sua quinta de Torges, e lá, em meio à natureza, recupera seu gosto de viver. 

Ecoando a tese de Rousseau e os romances campesinos de Júlio Dinis, o conto se distende entre as páginas 79 e 118 da edição compulsada (Contos, Porto, Lello, 1946). Escassas 40 páginas, que poderiam reduzir-se, com proveito, à metade, senão menos, se o narrador se ativesse ao cerne da situação e não se desviasse por atalhos e minúcias redundantes.

Aceitemos, porém, o texto como se apresenta e vejamos como se comporta em face da Cidade e as Serras, que tem, na edição de 1944, da mesma casa editora, 369 páginas. Para desdobrar quatro dezenas de páginas, já de si abundantes, em quase quatro centenas, somente fazendo interpolações, agregando observações, dando asas à fantasia, demorando-se nas passagens doutrinais, enfim, encompridando o texto artificial e desnecessariamente. 

Alguns exemplos bastarão para dar uma ideia do descompasso aritmético, que não altera, na sua estrutura, o conto original: eliminem-se os excessos e logo se perceberá que o núcleo dramático de "Civilização" é o mesmo da Cidade e as Serras.

Dois momentos nítidos se distinguem numa e noutra narrativa, demarcados pela ida do fidalgo Jacinto a Torges, em "Civilização", e a Tormes, na Cidade e as Serras. Enquanto naquele a viagem ocorre à página 93, na Cidade e as Serras dá-se à página 164. Como Eça multiplicou 14 páginas em 164? Simplesmente inflando o texto: em "Civilização", o narrador surpreende Jacinto aos 30 anos, portanto à beira de viver seu momento de transformação ou momento de crise, como de hábito no universo do conto13; na Cidade e as Serras, não só o imagina nascido em Paris (o que evidencia a artificiosidade um tanto hiperbólica que preside o novo traçado narrativo, como se detém no avô, no pai e na infância de Jacinto).

É que, nas palavras de um romancista atento à especificidade do seu ofício, "uma personagem de romance jamais pode ser confinada nos limites estreitos do conto, assim como a personagem do conto jamais pode ser alargada até as dimensões do romance sem qualquer alteração em sua natureza".

E daí para a frente, toca de esmiuçar tudo, a começar pela ideia que esse "Príncipe da Grã-Ventura" concebera, seguida de estirados diálogos em torno de questões intelectuais e mundanas, neutras do ponto de vista dramático; enfim, a exaustiva pormenorização do dia-a-dia de Jacinto e Zé Fernandes (agora sabemos o do narrador e amigo do herói) se espicha até um pouco menos da metade do volume.

Se tais ingredientes, certo que adicionados com brilho e o inimitável estilo queirosiano, encerrassem carga dramática, constituindo episódios ou capítulos de um complexo processo de interação social, estaríamos ante algo diferente do conto. Mas não é o que sucede: as interpolações e escusos não constituem polos dramáticos,mas enchimento verbal que apenas adia o instante dramaticamente significativo, quando o herói abandona o palácio, - situado na província portuguesa, no conto, e no 202 de Champs Elysées, em Paris, na Cidade e as Serras - pelo campo. Removidas as excrescências, resta um invariante, o plot que sustenta os dois textos:

1) um homem abastado, superiormente culto, enfastia-se de tudo, em meio aos produtos requintados da civilização do século XIX, iguarias finas, aparelhos modernos de comunicação e de simplificação da vida doméstica, e uma riquíssima biblioteca;

2) no auge do tédio, dá-se a fuga para a serra, de que resulta a modificação do herói em homem simples, mas feliz; 

3) o casamento e tudo o mais que se segue à sua transformação carece de vigor dramático: são consequências naturais da metamorfose operada no contato com o remanso bucólico; aí, sim, o fulcro de "Civilização" e A Cidade e as Serras. E mesmo o nascimento dos filhos de Jacinto e a instalação de conforto civilizado em Tormes, na Cidade e as Serras, apenas materializam, sem acrescentar novidade, a mudança transcorrida na alma e no temperamento do protagonista.

Atingira a individuação, diria Jung, após a qual não resta senão alargar os domínios do "eu" e da existência. E tal mudança é que constitui o alicerce das duas narrativas: ambas são, do ângulo da estrutura mínima e fundamental, contos, não importa que A Cidade e as Serras se espraie por centenas de páginas.


As Unidades do Conto

o conto é, do ângulo dramático, unívoco, univalente. Abramos parênteses para esclarecer o sentido dos vocábulos" drama", "dramático" e cognatos. Etimologicamente preso à linguagem teatral, "drama" significava "ação". 

E com o tempo passou a designar toda peça destinada à representação. na época romântica, dado o princípio da fusão de gêneros, entendia-se por drama o misto de tragédia e comédia. 

Transferido para a prosa de ficção, o termo "drama" entrou a significar "conflito", "atrito". Nesse caso, "ação" e "conflito" se tornaram equivalentes, uma vez que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação, ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se implicam mutuamente.


O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a seqüência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que participam. A ação pode ser externa, quando as personagens se deslocam no espaço e no tempo, e interna, quando o conflito se localiza em sua mente.

Para bem compreender a unidade dramática que identifica o conto, é preciso levar em conta que os seus ingredientes convergem para o mesmo ponto. A existência de uma única ação, ou conflito, ou ainda de uma única "história" ou "enredo", está intimamente relacionada com a concentração de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as divagações, os excessos. 

Ao contrário: cada palavra ou frase há de ter sua razão de ser na economia global a narrativa, a ponto de, em tese, não se poder substituí-la ou alterá-la sem afetar o conjunto. Para tanto, os ingredientes narrativos galvanizam-se numa única direção, ou seja, em torno de um único drama, ou ação.

Evidentemente, é a observação de incontáveis narrativas no gênero que induz a pensar que a uni valência dramática do conto significa haver um único objeto comandando a escrita e os componentes narrativos. Tomemos um exemplo: "Missa do Galo", de Páginas Recolhidas (1899), de Machado de Assis, composto por um único episódio, o diálogo repassado de sensualidade, entre o narrador, Nogueira, então com dezessete anos, e sua hospedeira, D. Conceição, uma balzaquiana, casada, com 30 anos.

Enquanto dormiam a sogra e as duas escravas, e como o marido, o escrivão Meneses, saísse de mansinho para uma de suas noites de teatro, eufemismo que lhe encobria os "amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana", Conceição esgueira-se do leito conjugal e vai para a sala, onde Nogueira lia Os Três Mosqueteiros, fazendo hora para ir ver "a missa do Galo na Corte". 

Sozinhos naquele serão natalino, que ficaria indelevelmente gravado na lembrança do narrador, arma-se uma situação dramática única, e por certo a mais importante, na trajetória existencial do perplexo adolescente.

A narrativa desse encontro memorável é um conto por encerrar unidade dramática, com princípio, meio e fim. Corresponde ao ápice na vida provinciana do Nogueira. Como o sabemos? Pela simples verificação de que o jovem, além de não protagonizar outra história qualquer, passaria seus dias na rememoração obsessiva daquele episódio marcante. 

Recordá-lo para sempre, como Sísifo, eis o seu suplício e sua delícia. Mas naquela noite ele vivera seu momento privilegiado, único instante em que sua vida escapou da cinzentice do cotidiano para a luz efêmera da ribalta.

Experimentara os quinze momentos de glória a que todo mortal tem direito. Pouco importa, a ele e a nós, leitores, tudo quanto precedeu a hora de subentendidos e meias palavras escaldantes de promessas, e tudo quanto se lhe seguiu: o passado e o futuro carecem de significação dramática, não possuem conflito, ação, digna de um conto. Quando muito, o contista apresentaria um sumário do passado, ou do futuro, que possa lançar alguma luz sobre a situação em foco: é a chamada síntese dramática.

A esse expediente recorre o narrador no epílogo da narrativa; "Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido". 

Do ponto de vista dramático, porém, tudo se encerrara naquela noite de frustre sedução amorosa. É irrelevante o que possa acontecer depois ao nosso herói, seja porque anunciado nos pormenores do conto, seja porque ele esgotara no conflito central todas as suas potencialidades e reservas emocionais. Regra geral, assim se passam as coisas no universo do conto.

Se não, podemos desconfiar que se trata, mais propriamente, de um trecho ou embrião de romance ou novela. O conto constitui o recorte da fração decisiva e a mais importante, do prisma dramático, de uma continuidade vital em que o passado e o futuro guardam significado inferior ou nulo. 

Os protagonistas abandonam o anonimato no momento privilegiado, de modo que o tempo anterior funciona, quando muito, como germe ou preparativo daquele instante em que o destino joga uma grande cartada.

O tempo subsequente se tinge de equivalente coloração: o futuro é previsível ou fácil de vaticinar, seja porque definido pela morte ou solução correspondente, seja porque os atos a praticar e os gestos a descrever foram determinados por aquele hiato dramático, seja porque os figurantes, depois disso, regressaram à primitiva obscuridade, não apresentando suas vidas nada digno de registro. Elimina-se, assim, a hipótese de continuarem no palco dos acontecimentos.

De onde o conto ser, a essa luz, obra fechada, dramaticamente circunscrita. Quando o ficcionista resolve ultrapassar essa barreira "natural", prolongando o convívio com os seres que criou, duas saídas se lhe oferecem: a primeira pode ser ilustrada pelo caso de Dalton Trevisan e Guerra Conjugal (1975), vGllume de contos que giram ao redor de duas personagens, João e- Maria. 

Que é que se observa nessa obra,engenhosamente arquitetada para vencer a referida limitação? Se a primeira narrativa é vivida por João e Maria, a segunda é-o por João! e Maria!, a terceira por João e Maria, e assim consecutivamente: João e Maria do segundo conto em diante não são os mesmos do primeiro, mas outras personagens batizadas com idêntico antropônimo, envolvidas em situações específicas, precisamente como na vida, em que os Joões e Marias de todo o mundo, apesar da identidade do apelativo, protagonizam sempre histórias particulares.

A segunda variação técnica se exemplifica em Bandeira Preta (1956), de Branquinho da Fonseca: transitando de uma narrativa para outra e vivendo a mesma situação dramática ao longo delas, as personagens (pedro, Chinca e outros) induzem o leitor a crer que o ficcionista estaria projetando, inconscientemente, um romance ou uma novela, e não uma série de histórias curtas. 

Se a primeira solução vale como exercício superior de um contista nato a repudiar o conforto das estereotipias, a segunda compromete, pela monotonia dramática e a inconsistência estrutural, o talento dum ficcionista de primeira água.

A unidade de ação condiciona as demais características do conto. Começando pela noção de espaço, verificamos que o lugar onde as personagens circulam, é sempre de âmbito restrito. No geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se organize. 

Raramente os protagonistas se movimentam para outros lugares. E quando isso ocorre, de duas uma: ou a narrativa tenta abandonar sua condição de conto, ou o deslocamento advém de uma necessidade imposta pelo conflito que lhe serve de base, constituindo a preparação da cena, busca de pormenores enriquecedores da ação, etc.

Nessa alternativa, o espaço ocupado pelas personagens antes do lugar onde se desenrola a cena principal é dramaticamente neutro ou vazio, espaço-sem-drama, ao passo que o outro é espaço-com drama. 

Em Civilização ", o espaço dramático situa-se em Torges; a estada no palácio é mero preparativo para a viagem ao local onde o herói, vivendo seu momento privilegiado, sofreria a decisiva mudança de caráter. 

Em "Questões de Família", de Dalton Trevisan, adiante transcrito, observa-se que a casa do protagonista é secundária do prisma dramático, enquanto a do sogro se apresenta tão cheia de conflitos latentes que acaba sendo palco da morte do herói.

Em "Missa do Galo", tudo se passa na "sala da frente" daquela" casa assobradada da Rua do Senado". Ali o drama começa e termina. Seus antecedentes, além de secundários, em poucas palavras se narram: "vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios". Mesmo que o narrador se detivesse a relatar-nos sua vida pregressa, teria de fazê-lo como síntese dramática.

Com isso, a unidade de espaço continuaria a ser observada. Daí o dinamismo do lugar físico em que a ação decorre: o contista, como se manejasse uma câmara cinematográfica, apenas se demora no cenário diretamente relacionado com o drama. Verse-á, mais adiante, quando se tratar da descrição, de que modo funciona esse mecanismo de enfoque geográfico.

A unidade de ação corresponde, assim, a unidade de espaço, e esta decorre da circunstância de apenas determinado ambiente encerrar importância dramática. da mesma forma que uma única ação, por veicular conflito, sustenta a narrativa, um único espaço serve-lhe de teatro. Pode-se dizer, consequentemente, que no conto se processa a determinação do espaço (e também do tempo como se verá), na medida em que os demais lugares (e momentos) são vazios de dramaticidade.

Do contrário, pela criação de vários pólos dramáticos, haveria desequilíbrio interno, e o conto perderia o seu caráter próprio para tornar-se esboço da novela ou romance. Por outras palavras, da mesma forma que há espaço-sem-drama e espaço-com-drama, no conto distinguem-se acontecimentos-sem-drama e acontecimentos-com-drama: estes é que constituem a ação central da narrativa, enquanto os outros funcionam como satélites.

A noção de espaço segue-se imediatamente a de tempo. E aqui também se observa unidade. Com efeito, os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em curto lapso de tempo: já que não interessam o passado e o futuro, o conflito se passa em horas, ou dias. Se levam anos, de duas uma:

1) ou trata-se dum embrião de romance ou novela,

2) ou o longo tempo referido aparece na forma de síntese dramática, que envolve, habitualmente, o passado da personagem. Em "Missa do Galo", os antecedentes temporais estão postos de parte: apenas sabemos a idade dos protagonistas; sabemos que tudo ocorre mais ou menos entre vinte e três horas e meia-noite: "ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso".

Tampouco interessam os acontecimentos posteriores ao episódio: umas poucas referências, que vão sublinhadas, não alteram a unidade de tempo do conto, mesmo porque vagas, secundárias e destituídas de força dramática: "Pelo Ano- Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido".

O conto, voltado que está para o centro nevrálgico da situação dramática, abstrai tudo quanto, na esfera do tempo, encerra importância menor. Assim se explica que lhe seja estranha, ou escassamente compatível, a "duração" bergsoniana, ou a complexa intersecção de planos temporais, engendrada pela memória associativa, ou por outro expediente análogo. De onde a "objetividade" do conto: desprezando os desvios e atalhos narrativos, concentra-se no âmago da questão em foco.

Tal "objetividade", presente ainda em outros aspectos, mais adiante examinados, salta aos olhos com as três unidades, de ação, tempo e lugar. Assinale-se que fazem lembrar o teatro, notadamente o clássico, numa relação que será circunstanciada num tópico específico. 

Às unidades referidas acrescente-se a de tom: os componentes da narrativa obedecem a uma estruturação harmoniosa, com o mesmo e único escopo, o de provocar no leitor uma só impressão, seja de pavor, piedade, ódio, simpatia, ternura, indiferença, etc., seja o seu contrário.

Corresponde à "unidade de efeito ou de impressão" , proposta por Poe na famosa resenha a Twice-Told Tales, de Nathaniel Hawthorne, publicada em 1842, na Graham 's Magazine. Não obstante posta em dúvida por vários críticos, empenhados em ressaltar-lhe a limitação, uma vez que não recobre todos os contos, 18 (a unidade de tom) continua indispensável para a melhor compreensão da estrutura do conto.

É que, como apontamos nas preliminares ao estudo das fôrmas em prosa, não se pode esperar que a teoria do conto englobe todos os espécimes no gênero. Raciocinar com as exceções não invalida a teoria, salvo se o número delas prevalecer sobre o das narrativas que serviram para que a teoria se erguesse. Mas, nesse caso, deixariam de ser exceções... Ainda que se trate de uma obviedade lógica, críticos há que não atentam para ela.

Compreende-se com mais segurança e nitidez que no conto tudo há de convergir para a impressão única, quando nos lembramos de que ele opera com a ação e não com os caracteres. Estes, entendidos como personagens redondas no grau máximo de complexidade (ver o tópico referente às personagens, no capítulo destinado ao romance), situam-se fora da narrativa curta, embora seus protagonistas usuais não se confundam com meros bonecos de 'mola nas mãos do ficcionista.

Tendo em vista a unidade de impressão, ou respeitando-a espontaneamente, à medida que urde sua trama, o narrador dispõe de um espaço e de um tempo circunscritos para movimentar-se. Sua meta não consiste em criar seres vivos à nossa imagem e semelhança, complexos e quiçá múltiplos, como pretende o romance, mas situações de conflito em que todos os leitores se espelhem. Somos todos eventuais personagens de conto, poucos de nós protagonizariam romances.

O esforço inventivo do contista se dirige para a formulação de um drama em torno de um sentimento, único e forte, a ponto de gerar uma impressão equivalente no leitor. A unidade de tom se evidencia pela "tensão interna da trama narrativa" , ou seja, pela funcionalidade de cada palavra no arranjo textual, de modo que nenhuma se possa retirar sem comprometer a obra em sua totalidade, ou acrescentar sem trazer-lhe desequilíbrio à estrutura. Toda excrescência ou amplificação torna-se, assim, indesejável.

Entretanto, impõe-se distinguir:

1) a digressão que provém dum alargamento narrativo ou do intuito de, fixando os olhos em ingredientes acessórios, distrair o leitor e adiar o clímax dramático;

2) a digressão resultante do empenho estilístico do narrador, ao dilatar o texto pelo acréscimo de notações plásticas, descritivas, a fim de propiciar ao leitor a contemplação de um momento de beleza verbal, não raro vibrante de estética poética.

Por paradoxal que se afigure, o primeiro tipo não se justifica, pois escancara uma porta dramática que o narrador não pode invadir, sob pena de principiar uma história paralela e, com isso, dar origem a uma estrutura imprópria do conto, ou mesmo anômala, posto que obediente a algumas de suas matrizes básicas. Somente o segundo tipo, por não derivar para situações tangenciais, tem razão de ser no universo do conto.

Um exemplo da primeira alternativa pode ser colhido no conto "O Filho", de Fialho de Almeida, história duma pobre camponesa que vai à estação de trem esperar o filho que regressaria do Brasil. Logo após introduzir-nos a protagonista, o narrador se entretém por um instante na descrição de outras pessoas que também aguardam:

Na sala de espera da terceira classe, entre bagagens e cobertores de lã, dormem aos montes, rabuzanos que vão trabalhar para o Alentejo, os varapaus de castanho atravessados, os tamancos ao lad~, os pés descalços, e um cheiro a lobo que se evola das suas saragoças montanhesas. Nostalgicamente, alguns tasquinham um pão de milho horrível, com sardinhas assadas entre as pedras.

E a descrição segue nesse diapasão por mais um longo parágrafo: a única justificativa para a digressão reside no fato de aqueles figurantes servirem de pano de fundo, paisagem social, no qual se estabelece o drama da campônia. Mas trata-se dum pano de fundo inoperante do ângulo dramático, uma vez que não colabora para adensar o clima de tragédia que se avizinha.

Ao contrário, faz supor outros conflitos, que o narrador, obviamente, não pode revolver sem ameaçar o equilíbrio do conto. Na verdade, permite admitir que, por momentos, o narrador se alheia do caso da velha, delineado com realismo, como pedia o decálogo em moda no tempo, para se entregar, subjetivamente, à pintura dum quadro melancólico:

E os mais novos, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, todos alegres daquela primeira migração às sementeiras de lá baixo, esses não param examinando tudo pelos cantos, espantados, deslumbrados, fulvos e bonitos como bezerrinhos de mama; e ei-los estacam diante dos relógios, dos aparelhos do telégrafo, a sala do restaurante cheia de flores, os chalés de hospedagem, e os pequenos jardins dos empregados da estação... Dois ou três arranham nas bandurras fados chorosos, melodias locais duma tristeza penetrante, em cujos balanços, gemidos, estribilhos, se acorda o murmúrio dolente das azenhas, vozes da serra, risotas da romagem, balidos do pulvilhal que entra no ovil, todas as indefinidas virgindades dessa sagrada terra da Beira, núcleo de força, e ainda agora a mais impoluta ara da família portuguesa.

o excurso provoca quebra da tensão narrativa, determinando um recomeço que pode ser prejudicial conforme seja a freqüência e volume das inserções: o conto extenso corre sempre o risco, mais do que o breve, de alongar desnecessariamente o âmbito da ação. Por outro lado, qualquer conto malogra quando destituído de tensão: formulá-la e sustentá-la, num andamento senóide, constitui o desafio enfrentado por todo contista.

Ora, o narrador não esconde que conhece a situação aflitiva daqueles migrantes em busca de trabalho, suscetível, por isso, de gerar outras narrativas, diferentes da que nos' apresenta em "O Filho". A digressão ainda pode funcionar como autêntica paisagem social quando dramaticamente neutra ou inacessível ao olhar do narrador, como no seguinte passo, do conto "José Matias", de Eça de Queirós:

o sujeito de óculos de ouro, dentro do coupé?.. Não conheço, meu amigo. Talvez um parente rico, desses que aparecem nos enterros, com o parentesco corretamente coberto de fumo, quando o defunto já não importuna, nem compromete. O homem obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves "Capão", que tem um jornal onde desgraçadamente a filosofia não abunda, e que se chama a "Piada". Que relação o prendia ao Matias?.. Não sei. Talvez se embebedassem nas mesmas tascas; talvez o José Matias ultimamente colaborasse na "Piada"; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas tão sórdidas, se abrigue uma alma compassiva.

em que o desconhecimento do narrador, ou o seu conhecimento relativo mas fechado, sela em definitivo o caso daqueles figurantes ocasionais, convocados, como "extras" cinematográficos, para uma "tomada" em que a sua presença se confundisse com o próprio cenário.

A segunda alternativa pode ser ilustrada com o seguinte parágrafo, do conto' 'Os Olhos de Cada Um", de Branquinho da Fonseca:

Ao sair desembrulhou a carta e começou a ler enquanto caminhava pelo corredor abaixo. E parou. E voltou para trás. Foi para o quarto de dormir, fechou a porta à chave, e começou, serenamente, a ler tudo desde o princípio. Pela janela entrava uma noite muito calma, com estrelas e luar. Ouviam-se as rãs a coaxar e a água a cair no tanque do jardim. Pedro, imóvel, sentado diante daqueles papéis amarelos, com o olhar parado, lia.23 onde o trecho desde "Pela janela" até "jardim" constitui pausa para contemplar paisagem, indispensável como sugestão de atmosfera, adiamento do desenlace, e admissivel porque neutro do ponto de vista dramático (mera descrição poética de ambiente).

O conto monta-se, portanto, à volta de uma só idéia ou imagem da vida, desprezando os acessórios e, via de regra, considerando as personagens apenas como instrumentos da ação. Uma narrativa bem resolvida obedece espontaneamente a esse requisito fundamental: quando não, resulta em malogro enquanto conto, embora contenha imanente um romance. 

Serve de modelo, mais uma vez, Machado de Assis com o seu "Missa do Galo": terminada a \ narrativa, fica-nos a impressão (que varia ".em grau conforme o leitor) de que a todos nós acontece, pelo menos uma vez na vida, um diálogo de subentendidos, onde se jogou uma partida decisiva em nossos destinos, e de que só tomamos consciência anos depois.

Todas as demais impressões possíveis ausentam-se em favor daquela que o contista escolheu para transmitir: e sabemos, depois de lido o conto, que a escolha foi a melhor, graças à impressão experimentada. 

Em síntese: o núcleo do conto é representado por uma situação dramaticamente carregada; tudo o mais à volta funciona como satélite, elemento de contraste, sem força dramática. Por outras palavras, o conto se organiza precisamente como uma célula, com o núcleo e o tecido ao redor; o núcleo possui densidade dramática, enquanto a massa circundante existe em função dele, para que sua energia se expanda e sua tarefa se cumpra.

O êxito ou o insucesso do conto se evidencia na articulação ou desarticulação entre o núcleo dramático e o seu envoltório não-dramático. Um e outro podem formar-se dos mesmos materiais narrativos (personagens, ação, espaço, tempo, etc.), mas os componentes do núcleo ostentam sentido dramático, ou seja, empenham-se num conflito, ao passo que os ingredientes periféricos não exibem conotações dramáticas. 

Assim sendo, o que importa num conto é aquela(s) personagem(ns) em conflito, não a(s) dependente(s); o espaço onde o drama se desenrola, não os lugares por onde transita a personagem, e assim por diante. Embora os exemplos analisados mais adiante procurem dar conta dessa faceta da teoria do conto, vejamos desde já um caso ilustrativo.

Em "O Búfalo", de Laços de Família (1960), Clarice Lispector imagina a protagonista em visita ao zoológico. Durante o trajeto, a sucessão de bichos é interrompida por lampejos de monólogo interior, que atinge o ápice no "momento privilegiado", ou "acontecimento significativo", diante do búfalo: o eixo central do conto se situa no "diálogo" silencioso entre a personagem e o animal. 

As observações anteriores e posteriores estruturam-se como cenário vazio de dramaticidade que, por oposição, ressalta o encontro fulminante, indicativo de uma profunda modificação interior, entre o olhar humano em desespero e o da fera em sua bruta imobilidade.


Personagens

Em decorrência das características apontadas, poucas são as personagens que intervêm no conto: as unidades de ação, tempo, lugar e tom implicam a existência de uma reduzida população no palco dos acontecimentos. Um mestre do conto moderno, preocupado não só com emprestar novidades técnicas à velha estrutura narrativa, mas também com seus fundamentos teóricos, já o dizia com estas palavras categóricas: "não é necessário retratar várias personagens.

O centro de gravidade deve repousar em duas pessoas: ele e ela...',25 Em "Missa do Galo", contracenam duas personagens, e as restantes (D. Inácia e Meneses, o marido de D. Conceição), além de referidas de passagem, não participam do diálogo que nucleia o conto: funcionam como pano de fundo, paisagem humana ou social. "Extras" que são, podem somar-se à vontade, visto sua condição predeterminar o âmbito estreito em que se movimentam. De onde não ser possível o conto em torno de uma única personagem; ainda que uma só avulte como protagonista, outra participará, direta ou indiretamente, na formulação do conflito que sustenta a história.

Nesse aspecto, "Um Ladrão", de Insônia (1947), de Graciliano Ramos, constitui narrativa exemplar: um gatuno penetra numa casa em plena calada da noite, para cumprir seu malévolo desígnio. Inexperiente, aterroriza-se e tarda a chegar ao quarto de dormir, onde se encontram as jóias que pretende surrupiar. 

Após longa indecisão, acompanhada dum diálogo mental com a moça dos olhos verdes, atinge o ponto desejado. Mas estaca, perplexo, ante a bela jovem que ressona placidamente. Que fazer? Tomar as jóias? Ceder ao impulso amoroso? 

Afinal, dispõe-se a beijá-la. "Uma loucura, a maior das loucuras: baixou-se e espremeu um beijo na boca da moça." Dado o alarme, é preso. Excetuando a namorada que ficou na lembrança, e com quem fala mentalmente, o protagonista age sozinho até o desenlace. Aqui, emprega-se um expediente narrativo típico do conto, ao menos numa de suas vertentes - o epílogo enigmático -, que será objeto de análise em tópico próprio.

Note-se que Graciliano Ramos concentra nele o auge do enredo, e é nesse momento que intervém a heroína: a equação dramática se monta e se completa no minuto em que, irrefletidamente, o larápio rouba o beijo. Dois protagonistas, em suma. 

Mesmo nos casos em que o autor utiliza o foco narrativo de primeira pessoa, ou de terceira pessoa aparente (ver, mais adiante, o comentário referente ao "ponto de vista"), está presente um interlocutor, quando pouco oculto ou subjacente.

Do contrário, não haveria conflito, que pressupõe uma tensão dialética entre opostos. Alguns dos contos de Clarice Lispector ilustram à perfeição essa contingência, ao surpreender a personagem nos instantes em que, mergulhando na introspecção, trava um diálogo com um .. outro" , seu oponente ou interlocutor. Ainda em conseqüência das unidades que governam a estrutura do conto, as personagens são estáticas ou planas, segundo a conhecida classificação proposta por E. M. Forster (Aspects of the Novel, 1927), discriminada mais adiante, no capítulo do romance.

O autor, focalizando-as no lance mais dramático de sua existência, imobiliza-as no tempo, no espaço e nos traços de personalidade. Em vez de crescerem no decurso da narrativa, como as personagens de romance, oferecem uma faceta de seu caráter, no geral a mais relevante, como que à luz do microscópio: o conto lembra uma tela em que se representasse o apogeu de uma situação dramática. O convívio com as personagens dum conto dura o tempo da narrativa: terminada esta, o contato se desfaz, visto que a "vida" dos protagonistas está encerrada no episódio que constituía a matriz do conto.

O intercâmbio rompe-se no desfecho pelo fato da existência das personagens não apresentar mais espaço à imaginação do autor e do leitor: com o epílogo, suspende-se o trânsito da fantasia, ou da contemplação do instante dramático que o conto focaliza. De onde o leitor, além de guardar na memória uma impressão que pouco a pouco se dilui, esquecer as mais das vezes o nome dos heróis.

 "Uns Braços" pode ser obra-prima em matéria de conto, mas quem se recorda dos protagonistas e respectivos apelativos? Ao contrário do autor de romance, o autor de contos, decerto cônscio da relativa importância dos nomes das personagens, chega mesmo a silenciá-los. É o caso, por exemplo, de "Um Ladrão", cujo protagonista é anônimo, bem como as figuras que lhe povoam a memória, salvo "o amigo que o iniciara", mas referido por meio de um cognome, Gaúcho, equivalente a não ter nome.

AGUARDE A PARTE SOBRE A ESTRUTURA DO CONTO.

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