segunda-feira, 30 de janeiro de 2012



PRIMEIRO CAPÍTULO DO MAIS NOVO ROMANCE BARRENSE



Menino moreno 


I

O relógio marcava vinte e três horas. Pelo céu escuro da rua 10 de novembro uma rasga mortalha passou sombria, por cima lá de casa. Ouvi a voz de mamãe dizendo:

— Diz que é sinal que tem um perto de morrer.

E o meu gemido de medo deitado na rede era mais alto do que os roncos do meu irmão que já deitado na rede tornava-se cada vez mais alto. E eu a todo um rumor abafado me tremia. Parecia que meu coração de tanto acelerar com a combustão do medo queria sair de dentro do peito.

— Acende a lamparina que este menino é medroso.

O pedido de mamãe acordando meu irmão deixou-me mais tranqüilo. Coitado dele tinha que acordar do sono dos justos para levantar e acender a lamparina perto de mim. Não gostava de dormir no escuro, mas mamãe dizia que era para economizar o óleo diesel.

Eu ouvia nítido lá do quarto novamente o som por cima do telhado o grito da rasga mortalha voando no mês de janeiro de 1987.  Corri para rede de mamãe, já chorando. Quando meu irmão acendeu a lamparina já vinha entrando no escuro de portas adentro dormir no outro quarto com mamãe.

Às quatro horas da manhã nós levantamos às carreiras para ir para o mercado público no centro de Barras. Lá do quarto com a lamparina ainda acesa, eu via mamãe ajoelhada perto do velho oratório da vovó que coberto com um pano branco e com a imagem de Jesus Cristo em cima, um lindo Jesus Cristo de braços abertos pregado numa cruz, um Jesus Cristo que fazia qualquer um pensar que era de verdade e que estava vivo.

Saímos para o mercado e cada um levava uma coisa para ajudar mamãe na labuta diária. O balde pequeno, eu que levava, já o maior meu irmão e o jacá arrumadinho quem levava era mamãe na cabeça.  A gente chegava na barraca ainda no escuro:

— Sou umas das primeiras a chegar e quem cedo madruga, Deus ajuda.

Antes de arrumar as coisas, mamãe rezava e não deixava ninguém olhar os seus segredos dos pés da reza para começar bem o dia. Fiquei espiando ela rezar, se benzer e com os olhos dormentes de sono sentado na cadeira esperando a barra avermelhada de o dia nascer.


O que passarei a narrar agora é um pouco do que pedi a Deus buscando na memória fatigada um pouco da minha estória e poder contá-la do que vivi na terra de marataoan, quando vim lá do Mocambo para morar em Barras. Não é nenhuma estória de artista, de estrela, mas é minha estória, ficção é claro. 



O ano foi o de 1987 e nele um dos momentos mais felizes. O que escrevo e não posso tirar nunca da minha lembrança são as aventuras que vivi quando criança. Nos pés de parede das casas alheias, humilhado na hora de assistir o Jaspion, também Jeronimo o herói do sertão e os changeman, porque lá em casa não tinha televisão. Também com a baladeira e o alforje cheio de pedras de piçarra, eu caçava as rolinhas fogo pagou que cantavam livre nos matagais para o lado do Curujal. Ás vezes, eu banhava com a água do poço de dona Severina e comia manga verde das mangueiras do sítio Curujal.

Nos caminhos tortuosos de areia da rua 10 de novembro,  eu fui menino que andou descalço e na casa de titio, o sapateiro na rua Gervásio Pires joguei pião, malinei e fiz danação. Pelas manhãs no mercado público junto da barraca de comida de mamãe acendia o carvão no fogareiro para fazer o fogo do café ferver.  A casa antiga lá da rua 10 de novembro onde me criei não tem as mesmas portas, janelas e até os meus amigos de jogar futebol ficaram diferentes e até uns já morreram e outros foram embora da rua também.

Lembro que já entrara o mês de fevereiro e uma saudade de mamãe começou a me agoniar depois que ela partiu pelo portão azul da escola. O colégio Honorina Tito inteiramente lotado de meninos no primeiro dia de aula. O ano de 1987, eu saia da alfabetização no Colégio Casulo de frente o senhor Pote, um colegiozinho que ficava perto da igreja dos crentes na rua Gervásio Pires. Eu já estava na primeira série e lembro bem da diretora que organizava todos em fila indiana por turma e série para cantar o Hino Nacional. 

Mamãe deixou-me no colégio e voltou para a barraca no mercado público vender comida. Uma hora da tarde marcava o relógio e eu olhando para o portão da escola, via que não se vencia a minha saudade com os novos colegas de escola, eu me contentava em ver o F. Cardoso de uma hora da tarde rumar para Teresina e ele buzinava quando parti levando a saudades de alguns.

E de súbito me irrompeu uma vontade de fugir daquele local antes de entrar na sala de aula. Iria de volta para o mercado público. Terminado o Hino Nacional saímos em fila para a classe. Quando entrei na sala de aula fui até a janela para iludir o desejo pertinente de fugir da escola. Andei pela sala toda.  Voltei para minha carteira. Vi um sujeito passando pelo corredor, o vigia, um homem alto que botava medo em quem metesse a besta de fugir dali.

Fiquei na sala para o primeiro dia de aula. Uma hora depois de a aula começar uma idéia apareceu na minha cabeça e sentado perto da janela olhava para o fundo da Cooperativa Mista, com a tentação no meu encalço de pular o muro alto e fugir pelo lado da Cubana. E o diabo atentando para eu fugir. Eu ia mesmo fugir se não fosse pela pisa que levaria de mamãe. O relógio marcava três e dez. Hora do recreio. Sai desconfiado para o pátio.  Fui até a cantina pegar o copo de leite pau de índio com bolacha, ainda bem que o Sarney era bonzinho naquele tempo.

Depois que sentei na calçada para merendar, lembrei-me da redação que a professora Socorro pediu para a turma trazer no outro dia. Fiquei merendando e batendo cabeça com a redação, não conseguia juntar as idéias, mas foi aí que veio á tona a semana santa, as horas de luxúria nas brincadeiras com as meninas lá no Mocambo. Continuei com o enredo na cabeça e tudo foi clareando.

Mamãe tinha me dado para comprar din din, dois cruzeiros, aliás, dois cruzeiros novos, sei lá o dinheiro mudava mais de nome que o aluno Kiko, o Golias da sala. Por falar em Kiko, esse era um menino da peste. Metido a valente. Todos o temiam na escola. Quando Kiko se aproximou de mim, apalpei o bolso. Se ele soubesse que eu tinha dinheiro, ele iria tomar tudo. 

Saí pelo corredor como um ladrão, imperceptível, rápido, alcançando a porta da sala para esconder-me dele. Bateu a campainha todo mundo correu para a classe. Kiko olhava para mim. Fiz que não o vi, e saí andando devagar para sentar na minha carteira. Mas com uma vontade irresistível de dar uma carreira. Se corresse, ele desconfiaria e caçaria briga. Era muito cedo para enfrentar o temível Kiko.

Quando deram cinco horas a campainha bateu para irmos embora. Andei pela rua são José, parei para olhar o Estádio Helvídio Nunes. As pedrinhas da reforma do Estádio ringiam sob meus sapatos quibambas. Dez minutos eu vi a casinha do pai de João Paulo já na rua 10 de novembro. Ouvi uma pessoa correndo atrás de mim com as passadas largas. João Paulo vinha do colégio da Tia Ducarmo, o colégio dos ricos como chamava os meninos do Honorina Tito. Ouvi o barulho seco do sapato dele chutando a piçarra da rua e ele tinha um sapato dos bons, uns sapatos Rainha, lançamento que o pai dele trouxe de São Paulo.

Eu disse para o João Paulo: "Vamos jogar no campo da beira do rio marataoan". ele disse: ainda dá tempo?". O pai de João Paulo começou a me olhar e depois para meu amigo. E levantou-se caminhando rapidamente no terreiro. Olhei para o homem: ele ainda me fitava. Levantou-se e veio até nós. Um frio correu-me o corpo todo.
— João Paulo vai é fazer o dever de casa!
Explicou-me.
— Ah! É que nós iríamos jogar bola?
— Ele não pode porque o avô dele está doente.
— Ah! Quem o vovô? Ele adoeceu? perguntou João Paulo.

Nisto dona Esmeralda o chamou para tirar a farda do colégio. O melhor era sair dali, aquele povo não gostava de mim, diziam que eu era menino de rua e ainda por cima criado solto. Podia desencaminhar o filho deles. Palavras daquele jeito me tiravam o sangue-frio. 

Do outro lado da casa de João Paulo ficava o bar das mulheres perdidas, o popular cabaré da Zulmira. Havia uns pés de cajus na quinta do velho Corano. Pulei para dentro dele. Miúdo passou por mim, dizendo:
— Quimneto, se o Virgulino pega você aí dentro?

Ri-me dele. Só se o diabo do Virgulino adivinhasse! Ouvi um grito de aboio vindo lá da entrada da rua São José. O coração acelerou. Quando olhei de cima da cerca de arame, Virgulino o encarregado do velho vinha a passos largos olhando para a quinta de capim verde com o gado dentro. Na portinhola do curral tinha um pessoal mostrando o gado. Pulei a cerca de arame quase na frente do homem, que me disse aborrecido:
— Eu não quero que pegue caju aí dentro, viu?

Fiquei com medo. Era a primeira vez que uma pessoa estranha me repreendia desde que vim morar na rua 10 de novembro. Virgulino me olhou de cara feia, e me deu um cocorote. Bateu na minha cabeça que os passarinhos rodearam. Se fosse com um pau, estaria perdido. Enfiei o caju no bolso da calça jeans e o outro ele jogou fora. Nem desconfiava do outro no bolso.

Virgulino me olhou com a cara fechada. Já se ouvia dizer pela rua que o homem era miserável com as coisas do velho Corano. Estava com medo dele, com a impressão de que se contasse a mamãe, ela iria me bater. Se ninguém soubesse, estaria salvo.



A CADA FINAL DE MÊS UM NOVO CAPÍTULO. ACOMPANHE ESSA EMOCIONANTE ESTÓRIA FICCIONAL

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