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JOGO
BAIXO
capítulo o7
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VII
O sol áureo do norte
O sol dourado
erguia a face desbotada, como uma meretriz cansada de uma noite de devassidão e
orgias. O céu azul dentro do garimpo parecia zombar dos homens afundados na
lama amarelada ao mercúrio e lutando naquelas horas de agonia, pelo ouro, pela
liberdade, pela riqueza... De repente senti-me só, senti-me grande, senti-me
único. Uma onda de lama me arrebatara cheia de pedras e por entre as pedras a
liberdade.
Eu vi boiar
dourado por entre as pedras assim que a escuma das águas desciam, uma pepita de
ouro lançado na peneira... Quantos anos, quantos meses passei naquela Sodoma e
Gomorra nem eu sei... Quando encontrei o ouro, o que era para ser liberdade,
virou um pesadelo, pois o homem era esperto demais e queria setenta por cento
do valor.
— É um absurdo
senhor Raimundo Dias.
— Ah! Gritou. Que
tem? Tá achando alto filho?
A voz de escárnio
dele me abafava, causava-me ojeriza. Eloá disse-me que eu estava ali pendente à
morte se não fosse embora de lá. Duas opções de morte. Eu tinha que escolher
entre a por suicídio ou ser assassinado por ele. Matar o dono do garimpo era
impossível.
Ele no auge dos
cinqüenta e cinco anos ainda era robusto, a sua estatura alta, seus braços
musculosos quebrar-me-iam e arrebentaria todo, além de ter muitos capatazes.
Demais, ele só andava armado com uma pistola sete meia cinco de dezesseis tiros
e dois carregadores lotados de cartuchos.
Raimundo Dias
levou-me para dentro da floresta perto de onde seria explorado outro garimpo,
com o objetivo de arrendar-me o local para exploração futura. Lá de cima do
precipício de barro avermelhado, ele atirou-me covardemente á queima roupa. Cai
no abismo profundo de uns dez metros mato adentro: tudo era negro, o vento gemia
lá embaixo nos ramos desnudos dos castanhais ressequidos e a corrente de água
de um riacho arrastou-me lá para o fundo só parando meu corpo perto de umas
pedras.
Eu tive medo, mas
tinha Deus nas orações. O tiro iria entrar no corpo como um espeto quente
dilacerando a carne se não fosse à medalhinha de nossa senhora da Conceição
dada por Samantha antes de eu partir.
— Estou pronto,
disse.
Raimundo Dias com
cinco capatazes riam dos lábios estalados de ganância. Só ouvi aquele riso...
Depois foi uma vertigem… o ar que sufocava como um peso que me adormeceu, como
naquelas anestesias gerais que se cai no sono profundo e se fica somente escutando
as vozes das pessoas de longe, mas os olhos pesam, o corpo fraquejado, frio,
inerte...
Era horrível:
ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas mãos, as raízes secas
que saiam pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso e meu peito sangrava. A
queda foi muito rápida… De repente não senti mais nada…
Quando acordei
estava junto a uma cabana de índios Taparás que me tinham apanhado junto da
corrente de água do rio preso a um tronco de castanheira que flutuava pelo rio
Araguaia. Era depois de dois dias e uma noite de delírios que eu acordava. Logo
que sarei do ferimento, uma idéia me veio: ir ter com o dono do garimpo. Ao
ver-me salvo assim daquela morte horrível, pode ser que eu me vingasse. Parti
para a vingança.
A idéia de
vingança por ele querer matar-me, por ele ter rido à minha agonia e eu havia de
ir chorar-lhe ainda aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-lhe nas faces, e
realizar a vingança de uma forma mais segura... Eu humilhado, mas não abatido!
Os cabelos arrepiavam-me
na cabeça, e o suor frio rolava pelo rosto. Quando cheguei ao rancho tudo
estava desmanchado e deserto, exceto por uma mulher com a face na mesa, e os
cabelos caídos. Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça...
— Uma
meretriz!... Um cadáver de mulher, já desbotada pela podridão, pelas moscas
assentando.
Raimundo Dias
morto também estava apodrecido com um tiro no peito. Eu o vi da boca lhe corria
uma escuma avermelhada, possivelmente bebera mercúrio utilizado no garimpo.
— Boa noite, La
marque... Eu esperava por você há muito tempo.
Essa voz
pareceu-me conhecida. Porém eu tinha a cabeça desvairada... Não respondi: o
caso era singular. Continuei a caminhar pela floresta procurando uma saída do
local. O vulto acompanhou-me. Quando cheguei mais um pouco a frente vi
estrondar um tiro para o alto. O sinal para parar. Era um homem que me
conhecia.
Porventura ainda
estamos vivos, ele dizia. O homem na verdade parecia ser conhecido. Meio baixo,
fala mansa, ele não se identificou. Pelas atitudes teria sido o desconhecido
quem matou todos no acampamento. O homem, uma espécie de moreno com franjas
lisas, meio baixas e tinha mãos ágeis com um revólver.
O cabelo longo e
assanhado e os olhos ardente e de um olhar castanho penetrante, tomou-me pelas
mãos... Senti-lhe as mãos úmidas de sangue... Do peito esquerdo saia muito
sangue.
— Sangue!
O homem sacudiu
os longos cabelos negros e riu-se. Sentamos em um tronco de castanheira. Eu iria
buscar ajuda, e deixá-lo deitado ao chão. Procurei um lugar para deitá-lo, da
boca um líquido espesso e meio coagulado.
— La marque, olhe
no meu bolso esquerdo da calça.
— Meu Deus! A
pepita de ouro está com você!
Foi uma vida
insana naquele garimpo. Conheci o homem, na verdade uma mulher. Era Eloá. Eloá se
vestira de homem e devolveu-me minha riqueza, minha liberdade, hoje minha
prisão. Eloá partiu. Partiu. Mas a lembrança ficou como o fantasma de um anjo
na minha mente fatigada. Depois dessa mulher a única saciedade era Samantha.
De repente vindo
pelo corredor da cadeia pública, um militar bastante apressado.
— La marque!
Chamou o tenente Cláudio.
— Sim!
— Você é um homem
livre! O juiz da comarca de Barras concedeu o alvará de soltura.
Há uma justiça
que nunca falha. A justiça de Deus. Há uma justiça que julga o inocente e solta
o acusado. Poderá haver dois erros. Um erro justifica outro. Poderá você ter-se
convencido da inocência de La marque ou da culpabilidade dele. Muitos erram.
Todos tentam consertá-los, porém poucos conseguem. Ás vezes usa o jogo baixo.
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