domingo, 22 de abril de 2012



Literatura Barrense
CONTO: UMA AVENTURA NA CIDADE GRANDE
         Teresina sempre foi palco de muita opção em entretenimento e lazer. O I Festival Gótico da capital seria promovido no antigo cine Rex na Praça Pedro II, mas a organização resolveu fazer mesmo no Feiticeiro das Trevas lá na praça da bandeira de propriedade de Chiquinho do Eloi por haver mais áreas espaçosas. O Clube "Feiticeiro das Trevas" ficava perto da Praça da Bandeira de frente ao Palácio da Cidade, no final das linhas dos ônibus coletivos e promoveria três dias dos  festivais góticos.
         Chiquinho do Eloi construiu o clube com uma arquitetura muito antiga parecia-se mais com o Quartel do “25 BC” do que com um clube noturno. Ele havia cercado toda a extensão do muro alto de cimento no qual haviam sido mandado embutir cacos de garrafas de cerveja e arames farpados de tão enferrujados que se não matasse uma pessoa no mínimo adquiria-se um tétano, além dos esforços de escalar seus três metros e meio de altura.   O dono do Feiticeiro das Trevas investiu pesado no sistema rudimentar de segurança que impedia qualquer uma pessoa sem dinheiro de querer ou ousar entrar ilegalmente sem deixar como forma de pagamento no arame um pedaço da própria carne ou sangue.
         Naquela noite de sexta-feira de agosto de 2010, particularmente, Dante não estava nem um pouco a fim de se preocupar com qualquer coisa referente aos pacientes que vinham para a pensão da tia no Monte Castelo, afinal ele teria que voltar somente a meia noite para a rodoviária. O rapaz perfumou-se todo com um desodorante qualquer, vestiu a calça jeans preta e bastante surrada, com a camiseta branca. A camisa nova era dessas que têm umas listras pretas nas costas com um grande desenho de escorpião para enfeitar e calçou o tênis quibamba já meio envelhecido.
         Dante saiu da pensão da tia sem se despedir de ninguém como sempre fazia e tomou rumo para o local do festival conforme o combinado com Ísis no encontro.  No horário marcado lá estava ele esperando para que Ísis estivesse ali e poderem ir para algum lugar mais tranqüilo. O rapaz checou o relógio e o horário para não se atrasar para o primeiro encontro. Ele sentou-se perto do Troca-Troca e ficou olhando o barco 4 de abril voltar da outra margem do rio vindo do lado de Timon.
         Dante deitou-se na sombra do porte a beira do cais de cimento. Olhando para o rio por muito tempo, vendo as águas turvas e rápidas do rio Parnaíba balançarem em ondas crispadas, o rapaz quase adormeceu, mas sentia frio e não pôde dormir. No fundo do Troca-Troca, ele via dois vultos encolhidos beijando-se e de vez enquanto, apreciando também as correntezas do rio, um deles o pouco maior que o outro vulto fazia gestos como se estivesse queixando-se de alguma coisa. O maior dos dois homens tinha o rosto cansado, queimado pelo sol e pelas intempéries do tempo e os olhos quase da cor das roupas esfarrapadas ao passo que o outro tinha um jeitinho efeminado e com roupas negras que os ocultavam na escuridão do local.
         Dante aguardava o horário de iniciar a festa no clube gótico da Praça da Bandeira. Cansado pela vigília da noite anterior a espera de pacientes para a pensão da tia, o jovem descansava a cabeça na palma da mão com o cotovelo dobrado repousando no cimento ainda quentinho do cais. Formava-se nos olhos castanhos claros do rapaz a bela imagem do barco vindo da outra margem escura entre os chorões baixos das ondas, apreciando a popa escura do 4 de Abril mergulhar no rio.

         Os olhos inflamados e vermelhos de sono piscavam irrequietos no rosto cansado, de feições imóveis que guardava permanentemente a expressão de indizível tristeza por não ainda ver a amada. O ruído manso das ondas, que esbarravam contra o cais de cimento, parecia ser o único som e não se ouvia nada mais, além do rompimento do invólucro pela língua das ondas castigando o cais sem clemência em gritos fluviais e lacustres.
         Dante via na perdição de ser e estar sozinho entregue às vicissitudes do próprio ego e perdido como um jovem que se encontra descrevendo amenidades e superficialidades para se fazer menos inútil até mesmo para si. As ondas movediças e traiçoeiras do Parnaíba por vezes aproximavam-se do cais e, então, tomava a forma de outro rio brilhante sob a luz das lâmpadas incandescentes dos portes elétricos da avenida Maranhão e as ondas jorravam sobre o cimento, áspero, produzindo um som calmo, insistente e majestoso. O rio corria sempre, apressado, pressuroso com suas ondas murmurando, tentando abafar os soluços nostálgicos do rapaz. O céu com estrelas brilhando refletidas sob as águas do rio, onde este derramava o complacente murmúrio de suas ondas sobre o cais.
         Quando isso acontecia, Dante desconhecia o fenômeno, esfregava os olhos pensando que o sono lhe houvesse prejudicado a visão como já lhe havia roubado a força das pernas e sentia o domínio rigoroso de Morfeu. O céu estrelado e aveludado já não parecia tão distante. De toda parte, vinham vozes de diversas pessoas góticas conversando, lá do Feiticeiro das Trevas os sons graves do rock testando o som também pareciam pesados e deprimentes com a friagem dos dias iniciais de agosto na capital.
         Ele levantou-se do local e foi andando, percebeu que o coração batia mais célere que de costume e que tinha preguiça não só de andar, mas até de pensar, mas não se esquecia da jovem e pensava no que teria acontecido com Ísis para o atraso.  Diante da entrada da festa, Dante chegou à conclusão de que estava encurralado. Ele pensou se era hora de cair fora do local e voltar para a pensão da tia, largando a busca por Ísis que tinha sido em vão. A mente fez o melhor possível nas alternativas, mas era hora de voltar para casa. Um pensamento seguia o outro, mas a tristeza, que o acompanhava qual uma sombra, tornava-se mais pesada, mais amarga, de minuto a minuto. Os portes com góticos conversando antes de entrar no Feiticeiro das Trevas também se tornavam mais sufocante, indefinido, sem forma com as sombras delas desfiguradas sob a luz.
         Dante via muitos jovens, homens e mulheres góticas, que passavam por ele, não lhe davam atenção alguma, só olhando para o rosto com olhar discriminatório da cabeça aos pés por ver as roupas robustas e apressavam-se a chegar à entrada do clube. No entanto, ao olhar para a quantidade de adolescentes góticos descerem na praça da bandeira dos coletivos e outros se empurrando para entrar no clube, Dante não tinham mais tanta certeza de que a consciência lhe permitiria abandonar a busca. Ele via muitos jovens góticos do qual jamais viram tantos na vida reunidos para os três dias de festivais com tantos adolescentes de roupa preta por toda parte. O rapaz avaliou as opções possíveis no cardápio da consciência e resolveu optar pelo mais favorável.
         - Ficou ou vou embora, e se ela estiver aí? Perguntou para a consciência.
        Mais naquela noite de sexta-feira ficou a olhar pensativamente o horizonte vendo o lindo céu estrelado. Imaginava que o nevoeiro fossem a fumaça produzida pelos milhares de chaminés das padarias da cidade dos sonhos, interrompidos pelo devaneio daquele momento. Amaldiçoou a sorte de ser pobre ao consultar os bolsos e não ter um real para entrar. A entrada do Clube Gótico por um portão grande que direcionava para um pequeno corredor estreito de pedras com areia e britas até sair no amplo salão.
         Assim que se aproximou para espiar a entrada, foi sugado pelo fluxo de adolescentes que se comprimiam para entrar e o empurravam com o desespero de aproveitar o último dia do festival.
         - Sai da frente, babaca! Disse um magrelo feito um alfinete humano de tão pálido, abrindo caminho com uma cotovelada em Dante.
         - Ei! Sai do meio seu liso. Alguém dando um puxão na camisa do rapaz que quase a rasgou, sorte que era nova, mas não tinha nem pago ainda.
        - E aí, vai entrar ou não? Uma adolescente olhando para ele, parecendo ter saído do meio dos mortos.
        De súbito, o Feiticeiro das Trevas todo estremeceu iluminada pela luz azulada dos raios de luzes do globo giratório. A claridade que o revestira, oscilou desaparecendo por alguns instantes. Em seguida, silêncio absoluto que parecia não ter fim. O segurança de mais de dois metros pegou no ombro de Dante retirando brutamente do meio do pessoal. O rapaz espiando para ver Ísis estava bestializado pelo ambiente e pela ignorância daquele armário ambulante. Nunca tinha visto um clube exótico com pessoas diferentes ou melhor que se vestiam completamente estranho. Todos de roupas pretas que amavam a noite e adoravam a morte, além de cemitérios e rock. O show da noite era de uma banda de rock piauiense.
              Dante sentindo-se humilhado pelo segurança consultou os bolsos e sem dinheiro para entrar na festa, voltava por dentro da Praça da Bandeira rumo à pensão, quando foi abordado por um marginal armado de revólver trinta e oito. Ele não imaginava o perigo da cidade grande e a violência, afinal só tinha ouvido em Barras das estórias dos lanceiros do centro e de meninos trombadinhas.         Dante fez o sinal da cruz apegou-se a nossa Senhora da Conceição e Deus, ficou imóvel e silente, parecia grudado ao cimento da praça aonde seus pés pisavam. O elemento armado, um jovem que aparentava ser menor de idade pedia para ele entregar todo o dinheiro que tivesse, mas o rapaz só tinha um celular Nokia M50 dentro do bolso da calça jeans. O telefone era de propriedade da tia dele dona da pensão para contatos com pacientes na rodoviária. Como sempre andava sem créditos, como se fosse novidade. O rapaz sem dinheiro algum passou o celular que não valia nada. O marginal sem pestanejar pediu suas roupas rapidamente. Uma velha calça jeans surrada pelo tempo e desbotada pelas lavadas de sabão em pó na água sanitária e a camiseta branca com listras e um desenho de escorpião nas costas, além do velho tênis quibamba.
         Ele pensou na vergonha de ficar nu, mas sob o cano da arma era ameaçado constantemente pelo marginal que tinha pressa, Dante tratou de despir-se rapidamente. O infrator vestiu a roupa sem desgrudar da arma e do olhar no rapaz e saiu às pressas para o rumo da Paissandu. Dante quase totalmente despido no escuro da praça olhou para um lado e para o outro no meio da escuridão do canto da praça e tratou também de vestir a bermuda preta e amarelada de sujo e uma camisa velha do time do River que o elemento usava na hora.
         Desconsolado pela situação constrangedora, decidiu contrariado sentar na calçada de frente ao clube gótico, em meio a alguns transeuntes na porta do clube e ficar refletindo sob o que contaria a tia sob o celular, lembrando-se das recomendações que a mulher fizera a ele sobre os perigos da capital. Quando ele sentou na calçada, sentiu um incômodo no bolso de trás do lado esquerdo da bermuda, meteu a mão no bolso e espantou-se por um puxado de três notas de cinqüenta reais amassadas e molhadas, logicamente poderia ser fruto de roubos praticados pelo jovem marginal.
         Dante deu um pulo de espanto em meio à situação constrangedora e alegre para entrar no clube, vestido de riverino numa bermuda preta e de chinelos havaianas. Comprou o ingresso por dez reais na bilheteria, recebeu o troco e majestoso foi até o portão da entrada do clube, arrogantemente se fez de prepotente entregando o ingresso ao brutamonte do segurança. Seus olhos imóveis olhavam à frente, o medo não lhe permitia pestanejar. Escutava atento o rock pesado e afogado pelo tumulto dos góticos dançando. Sentia-se o mais diferente e arrojado no meio deles com vários olhares perseguindo-o de cima e abaixo pelas roupas ousadas.
         A escuridão do corredor se abria em uma grande pista de dança de cimento impregnada pelo cheiro de álcool, lança perfumes e vidros de loló misturado ao suor das camisas dos jovens.  A cena surreal com três caveiras espetadas num arco metálico feito de alumínio e três enormes candelabros com velas vermelhas e pretas acesas sob um grande mausoléu feito de madeira de mogno por trás do palco da banda. Lá no palco dentro do salão uma centena de corpos se movia como o som do rock pesado sob o efeito de flash de luzes e globos de luzes coloridas no teto do clube girando de um lado para o outro. Pulavam para cima e para baixo, como uma grande onda humana, braços colados ao corpo, cabeças balançando como protuberâncias nos corpos sem vida no topo de colunas espinhais rígidas e magras vestidas de roupas negras.
         Os góticos mais ensandecidos mergulhavam do palco para a platéia, caindo em um mar de corpos humanos. Corpos rolados de um lado para outro como se fossem bolas de futebol. No teto, luzes em flashes e globos giratórios faziam com que a cena lembrasse uma danceteria. Do outro lado da pista, um empilhado de caixas de som com alto-falantes chacoalhavam com tanta intensidade que nem o mais corajoso dos góticos conseguia ficar muito perto sem ter os tímpanos estourados. Dante tapava os ouvidos com os dedos e começou a procurar em meio à multidão por Ísis. Para onde quer que seus olhos direcionem, ele via um jovem gótico. Os corpos formavam uma massa tão compacta que era impossível discernir o rosto das pessoas com aquelas roupas pretas.
         A linda Mirela Lis soltou um gritinho assustado e pôs-se de pé num salto. Viu então, que se tratava de uma mulher de mais idade que a dele, bonita, dona de grandes olhos azuis que o olhava assustada quando um gótico tentou dançar com ela e correu em sua direção, quando chegou perto de Dante desviou e abraçou o esposo Jonathan. Não viu ninguém que se parecesse com Ísis, além de todos parecerem iguais. Era óbvio que ele não conseguiria se misturar à multidão sem ser pisoteado e ficava pelos cantos do salão. De vez enquanto sua cabeça levantava procurando pela face da garota.
         Alguém começou a vomitar perto dele, tinha tomado cerveja quente na latinha misturado à caipirinha de vodka. Exatamente o que havia cotovelado Dante na entrada do clube.
         - Que ótimo. Grunhiu Dante.
         Saindo em direção do palco cujas paredes estavam cobertas de pinturas de caveiras, sepulturas e cruzes feitas por grafites. O estreito corredor virou um pequeno túnel espelhado pelos cacos de vidro e dava para o pátio com mesas e cadeiras espalhadas. O pátio também estava cheio de góticos, mas, para Dante era como se estivesse em plena liberdade pela brisa que varria o lugar. O céu de agosto abria-se sobre Teresina e o ruído ensurdecedor do rock ficou distante.
         Ele sem dar atenção aos olhares curiosos dos góticos deixou-se cair em uma cadeira na primeira mesa vazia que encontrou. Nos dois dias em Teresina parecia que uma vida inteira havia se passado desde que ele veio de Barras. Após colocar no chão algumas garrafas de cerveja vazias de uma mesa, Dante pousou a cabeça nas mãos decepcionado por não encontrar Ísis, mais alegre pelo dinheiro no bolso. Não havia encontrado a garota e levantou-se rumo ao portão de entrada.
         Jonathan marido de Mirela Lis por sentir que Dante salvou a esposa de algum engraçadinho no salão do clube ofereceu uma bebida de graça. Ele, um homem magro, alto, boa aparência aproximou-se de Dante e ofereceu-lhe um copo de caipirinha com vodka geladinho. Ele olhou com receio de receber o copo, mas relutou um pouco e agradeceu. Nada como uma dose alcoólica no sangue aquela altura. Tomou tudo de um só gole. Dante bebeu tudo de uma só vez e quando desceu o copo para colocá-lo na mesa procurou pelo rapaz e ele sumiu por entre outros góticos.
         Aquela caipirinha havia caído do céu em meio à sede que ele estava. Ficou imaginando o que a tia iria lhe perguntar sobre o celular. O par de olheiros da pensão caminhava e pensava, acabava de ver, da maneira mais inconfundível, no olhar daquele infrator da lei um súbito de pânico. Poderia ter escrito num papel os pensamentos dele.
         - “Ah, meu Deus, tenho que fugir”. Só quero suas roupas...
        A gente sempre ouve falar em pessoas que perdem a cabeça e cometem os crimes mais insensatos. Realmente, não se pode ter certeza.  O cara com um revólver nas mãos é um sujeito lunático e cheio do crack. Sempre ouvi dizer que as drogas deixam a aparência das outras pessoas transformadas. Acho que desde o início me pareceu que ele tinha um olhar meio esquisito. É um marginal sedento por dinheiro e drogas.
         - Estou falando sério. Dizia Dante em voz alta falando sozinho caminhando inconsolado. Se não acontecer nada que esclareça essa situação terei de inventar uma desculpa para o celular, pensava o rapaz.
         Assim que chegou a pensão da tia tratou logo de ir para o quartinho e ouvindo uns barulhos estranhos de lá. O dia estava amanhecendo.

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